domingo, 8 de novembro de 2009

Quando a violência policial não (?) se justifica

humberto o sousa


Conheço o Zezinho há quinze anos, nem bem descarregamos a mudança e ele já estava tocando a campainha oferecendo os seus serviços de trabalhador free-lance (biscateiro).
Ele deveria ter uns dezoito anos nesta época e durante os quatro anos seguintes ajudou-me a cortar grama e trepadeira, reparar instalações elétricas, pintar a casa, etc.
Eu e minha esposa fomos seus padrinhos de casamento, nasceu-lhe o primeiro filho e ele deixou a vida de biscateiro conseguindo um emprego fixo e, tendo renda mensal líquida e certa, pôde enfim deixar de morar com a sogra e alugar uma casinha.
Como tudo começou a dar errado eu sinceramente não sei, só sei que, ao sair do trabalho, passou a freqüentar botecos, daqueles conhecidos como “copo sujo”, somente indo para casa depois de estar completamente bêbado. Nenhuma esposa agüentaria isso e a dele não agüentou, pegou a mala e o filho e voltou para a casa da mãe, como ele não tomou nenhuma medida para trazê-la de volta, todos comentaram que ele nem deve ter notado que ela se foi.
Perdeu o emprego e voltou a fazer biscates, claro que ele não agüentava mais o batente, mesmo assim eu voltei a chamá-lo para me ajudar, não fazia nada, mas me distraia ouvir as suas aventuras boemias. Esta boa ação somente durou até eu pegá-lo fumando um cigarro de cheiro estranho na varanda de minha casa. Coloquei ele para correr.
Soube que ele havia se amigado com uma senhora uns vinte anos mais velha do que ele e bebia a mais na mesma proporção. Morava o casal mais a filha dela, viúva, e os dois netos da anciã. O romance acabou abruptamente quando a velhinha acordou de um porre e pegou o Zezinho na cama com a sua filha. Sob ameaça de ser capado, Zezinho fugiu levando junto a filha, deixando os netos para trás.
Sempre que me via pedia uns trocados, minha esposa quando fazia compras no mercado, não se esquecia de comprar alguns mantimentos para ele e a atual amante.
Começaram as prisões: furto, assalto a mão armada (canivete), posse de substâncias ilegais etc. O Delegado contou para minha esposa que somente o prendia quando precisava saber quem estava vendendo “crack”, não precisava nem perguntar “Zezinho, você ta comprando droga de quem?”. Ele já entrava na sala falando “Seu Delega, fulano é quem tá me vendendo”.

Estou contando a história do Zezinho para que entendam que o principal personagem deste escrito é responsável pelo título.

Há uns quinze dias atrás tive um problema elétrico com meu carro, como moro na zona rural, caminhei alegremente os sete quilômetros até a cidade sob um Sol de assar leitão à pururuca. O eletricista falou que o problema era simples, para ele não para mim, era só trocar o miolo da chave de partida, confesso que fiquei imaginando como ele ia trocar o miolo da minha chave, pediu para eu esperar trinta minutos, era o tempo que levaria para acabar o serviço que estava fazendo e partiríamos, como era “simples” , ele já levaria a peça e faria o serviço lá mesmo em minha casa (levou cinco minutos para consertar a droga do meu carro, realmente era simples).
Fiquei sentado na porta da oficina e de repente acabou o sossego.
Lá vem o Zezinho em desabalada carreira pela rua, com metade da cidade atrás querendo linchá-lo, a sorte dele é que chegou uma viatura policial. Os dois policiais desceram, era o Kabim (“baixim, pretim, espevitadim e com cara de bobim”) e o Hulk (“grandão, bundão, ignorantão, ... um monte de ão ... acabando com cara de bobão”).
Protegeram Zezinho e perguntaram para a turba enraivecida o que estava acontecendo, eu havia me aproximado para ouvir também, e o ocorrido foi o seguinte: Dna ... havia ido ao mercado comprar fraudas para a filha, saibam que ela tem dezoito anos e idade mental de três, e quando voltou encontrou aquele filho de uma puta, desculpa para a tua mãe Zezinho, ela é uma santa e não merece o filho que tem, beijando a sua filha seminua.
Perguntaram para o Zezinho se era verdade, respondeu que era, ele estava passando por ali e viu a Dna ... saindo, deixando a casa aberta, resolveu entrar para pegar alguma coisinha para fazer dinheiro, quando viu aquele mulherão, nua da cintura para baixo, rindo feito boba para ele, com ou sem paralisia cerebral ele resolveu traçá-la e foi aí que a mãe dela voltou e aprontou aquele escândalo, e ele teve que fugir.
Kabim mandou Zezinho se virar para ele por as algemas, na maior educação, o problema é que quando ele se virou, já pondo as mãos para trás, ele viu o Hulk, segurando o riso e com cara de deboche. Zezinho não pensou duas vezes e antes que alguém pudesse impedi-lo partiu para cima do Hulk, pulando com os dois pés no peito dele, jogando-o ao chão, o policial, ágil como um gato, levantou com um salto e desceu o braço no Zezinho, que caiu. Nunca vi ninguém apanhar tanto na vida, fiquei com pena mas a platéia estava aplaudindo e incentivando o policial a chutar mais. Por fim o Kabim conseguiu conter o companheiro e transportara o infeliz para a delegacia semi-desfalecido.

Ontem, sábado, pela manhã, sai do serviço e no caminho para a padaria cruzei com o Zezinho, mais enrolado em bandagens que uma múmia. Naturalmente ele me parou para pedir uns trocados e eu naturalmente dei foi quando ele lascou a pergunta: “Cumpadi, cê tava lá quando me prenderam?”, respondi que sim e ele, com um sorriso safado no rosto, faz a seguinte comentário:”Se você acha que eu apanhei muito, deveria ter visto o tanto que apanhei na delegacia”, e vai embora.
Fico pensando com meus botões que ele mereceu tudo o que recebeu.

domingo, 25 de outubro de 2009

O último convidado.

humberto o sousa

Ele ficou contente com o convite dela. E pensar que até três dias atrás, somando os sete anos que estudavam na mesma classe, ela mal lhe havia dirigido meia dúzia de palavras.
Tudo começou quando o professor de Química resolveu que a prova daquele bimestre seria feita em duplas determinadas por ele e, para felicidade dele, escolheu ela como sua parceira. Marcinha que nunca havia tirado nota maior que seis em Química, naquela prova tirou dez.
-Roberto?
“Marcinha, meu amor, pode me chamar de Beto”, ele pensa dizer, mas somente diz: -Sim?
-Sábado é meu aniversário e vai ter um bailinho lá em casa, você gostaria de ir?
“Com toda certeza, como já esperava o teu convite já comprei até o presente”. –Claro.
-Vai começar às oito da noite. Daria para você chegar um pouquinho mais cedo para me ajudar a organizar umas coisinhas?
-Tá.
Ela abre a bolsa e lhe dá um convite com o seu nome escrito.

Chega em casa feliz da vida. A mãe pergunta-lhe se viu o “passarinho verde”. E ele conta que a Marcinha o convidou para a festa de aniversário dela no Sábado e que ele iria precisar de roupa e um par de sapatos novos, afinal nunca ninguém havia convidado ele para nada e será que ela, a mãe, não poderia ajudar-lhe a comprar um presente para a Marcinha, afinal ela era a melhor amiga dele e eles estudavam juntos desde a quinta série.

Enfim chega o sábado.
São sete e meia da noite e ele já estava no portão da casa da Marcinha tocando a campainha. O pai dela é que vem atender:
-Você que é o Roberto?
-Sou.
-A Márcia está se trocando. Você sabe como são as meninas, levam horas para se trocarem.
-Sei.
-A Márcia me disse que você a ajudou na prova de Química, que você é um bom garoto e que não tem muitos amigos.
Ao ouvir o elogio ele cora envergonhado, mas, a menção de que não possuía amigos, aos poucos a vermelhidão vai se convertendo em raiva.
-Não fique com vergonha, ter poucos amigos às vezes é vantajoso. Veja meu problema, toda festa que nos damos enche de “penetras”. Para resolver o problema desta vez resolvemos distribuir convites e se eu colocar uma pessoa com muitos amigos aqui para conferi-los, esta pessoa provavelmente vai colocar para dentro todos os amigos que tiver, com convite ou sem convite, tornando-os inúteis.
-Entendo.
-Então eu gostaria de te pedir um favor.
-Pois não.
-Você poderia ficar aqui no portão recebendo os convidados?
-Posso.
-Não é por muito tempo, só foi distribuído vinte convites e cada convite dá direito a duas pessoas entrarem.
-Entendi.
O pai da Márcia faz-lhe um carinho no ombro e se afasta em direção a casa, mas volta na metade do caminho.
-Quando entrar o último convidado você poderá aproveitar a festa.
Os convidados começam a chegar e ele vai pegando os convites. Os colegas de classe ficam admirados por não saberem que ele era intimo da família da Marcinha.
Lá dentro começam os risos, a música e pedaços de conversas entreouvidas no intervalo das músicas.
Lá pelas tantas ele olha o relógio, já passava das dez.
Mais dez minutos e o pai da Márcia vem com um pratinho de salgadinhos e uma lata de refrigerante. Ele agradece a gentileza.
-Já tem quantos convites?
-Dezoito - ele responde de cor, ele contava os convites a cada convidado.
-Você vai ter que ficar aqui mais um pouquinho.
Nesse momento chega mais um convidado, só ficou faltando um.
-Roberto, te vejo lá dentro, o último convidado não deverá demorar muito – diz o pai, retornando para a festa.
A meia noite chega e os primeiros convidados já estão partindo e ele continua lá, esperando o último convite, xingando o filho da mãe até a última geração.
Marcinha vem e lhe entrega um pratinho de bolo e pergunta-lhe porque ele ainda estava ali fora.
-Esperando o último convidado – Ele diz entregando-lhe o presente que a mãe havia comprado.
-Me deixaeu conferir quem não veio.
Ele lhe entrega os convites e ela começa a ler os nomes nos envelopes, depois ela os conta.
-Roberto, tem dezenove convites aqui e só está faltando o teu.
-O meu?
-É.
Ele tira o último convite do bolso da calça e o junta aos restantes.
Ele está se sentindo um verdadeiro pateta.

domingo, 13 de setembro de 2009

A receita

humberto o sousa



-Hoje acordei com vontade de ir à Londres de novo.
Ela pergunta: - Você já foi a Londres?
-Não, é que semana passada também tive a mesma vontade.
Ela sorri e ele pensa que ela está rindo da piada dele. Na verdade ela está rindo dele, como uma pessoa de trinta anos podia ser tão imbecil?
Ela já estava namorando ele há um mês, detestava-o desde a primeira vez que ele lhe dirigiu a palavra. Ela havia prometido ao avô que arranjaria um namorado e o levaria para a festa da igreja e, como não negava nada ao avô, teria que agüentar este babaca, que ela escolheu a dedo, até lá.
Ela tinha vinte e dois anos, um metro e sessenta, bonita, cabelos negros e olhos verdes. Não possuía um corpo perfeito, ela era daquelas mulheres magras que tinha os quadris largos e as coxas finas, ficando um vão enorme entre as pernas. Como dificilmente usava calça a maioria das pessoas achava que ela era evangélica.
Ele tinha quase dois metros, cento e vinte quilos e até para ir à padaria da esquina ia de carro. Ele naturalmente se sentia poderoso diante dela, protetor.
- Uma formiga chegou para a outra e disse: “Meu nome é fumiga e o teu? ’
E a outra respondeu - ‘Ota”.
Ela sabia onde aquilo ia dar outra piada sem graça, mesmo assim perguntou - Ota o quê?
- Ota fumiga. E ele dá uma imensa gargalhada.
Ela até que poderia se apaixonar por ele. Se a situação fosse outra, casariam, teriam filhos e ela o protegeria das durezas e injustiças da vida, mas ela estava impedida pelas condições do avô, então o odiaria e fim de papo.
- Sabe, no fim de semana tem a festa da igreja matriz, lá em minha cidade, terei que ir e gostaria que você fosse comigo.
- Mina, com você, e por você, vou até o inferno.
- Então agente sai na sexta feira à noite. Só não diga para ninguém onde você está indo, algum amigo teu poderia querer ir. Quero um fim de semana somente para nós dois, afinal vou te apresentar minha família.
Enfim sexta feira, ele aguardava ansiosamente este dia. Tinha a esperança de que iria finalmente come-la.
Ela o está aguardando em frente ao prédio dela, de bagagem somente uma bolsa. Ele pergunta se ela não tem nenhuma mala e ela responde que tem roupas de sobra no sítio do avô.
Ela diz que iriam no carro dele, mas seria melhor ela ir dirigindo. Ela sempre confundia esquerda com direita na hora de explicar o caminho para alguém. Ele, querendo deixá-la feliz, concorda.
Ela dirigiu a noite toda e, sempre que possível, por estradas secundárias. Ele perguntou-lhe o porquê disto e ela respondeu que não gostava de pagar pedágio. Na verdade ela estava era fugindo das câmeras de segurança, que certamente filmariam o carro e, na investigação policial que aconteceria no futuro, esta imagem poderia aparecer.
Chegaram ao sítio do avô logo após o nascer do sol. O avô já estava de pé e os esperava na varanda da enorme casa, abraça a neta e cumprimenta o namorado, dirigindo à neta um olhar de aprovação.
- Fico feliz que tenha vindo com minha neta, ele diz. Há mais de cem anos nossa família faz quitutes para a festa da igreja da cidade. Minha filha sempre me ajudou no preparo dos pasteis que serão vendidos na quermesse, mas como morreu em um acidente no ano passado, é minha neta que terá que me ajudar. Se você não tivesse vindo com ela, veja a carinha de felicidade dela, ela não estaria tão feliz e os pastéis não ficariam gostosos e o padre brigaria comigo.
E o avô continua falando sem parar, ele mal tem tempo para pensar.
- ... Sei que estão cansados, mas insisto que você venha ver os animais que crio. São animais silvestres, claro que tenho autorização do IBAMA, vendo a carne para restaurantes de São Paulo e do Rio. Também exporto.
E vai conduzindo os dois para os cercados onde estão os javalis, pacas e antas.
Depois insiste para que ele veja as instalações onde as carnes eram processadas.
A construção, com seus azulejos e pisos brancos, bancadas e pias de aço, tem uma aparência de higiene e limpeza.
Ela caminha logo atrás deles e em determinado momento o chama, obrigando-o a se voltar para ela. Ela segura seus braços e o olha com um olhar triste.
Ele não vê que o velho, atrás dele, pega uma pesada barra de ferro.
A última imagem que ele viu foi o rosto dela sendo coberto com sangue e fragmentos de uma substância esbranquiçada que ele sabia ser o cérebro dele. Como já estava morto ele não viu que ela limpava o rosto com as pontas dos dedos e os levava à boca e em seus olhos não havia mais tristeza e sim uma voracidade animalesca.

Naquela noite ela e o avô venderam mais de quinhentos pasteis de carne, que foram muito elogiados e, como sempre, todos perguntavam que carne que eles usavam e eles respondiam que era uma mistura de carnes de caça, cuja receita era segredo de família.

domingo, 30 de agosto de 2009

Pregação

Escrito por Divina Scarpin

“Irmãos, estamos aqui, nesse lugar sagrado, para adorar a Deus, aquele que nos criou e que criou o mundo em que vivemos. É graças a Deus que temos vida, que temos alimentos, calor, abrigo, tudo! Deus é nosso pai e seu amor infinito faz de nós, seus escolhidos, os merecedores de sua graça. É por Deus que existimos, é graças a Ele que respiramos. Aleluia, irmãos!
Mas tem aqueles, aqueles seres sem fé e sem amor no coração, ímpios, pecadores que não reconhecem a grandeza e a bondade do Pai e que questionam seus desígnios. Ah, irmãos, não se deixem enganar por esses demônios pecadores, eles queimarão para todo o sempre no inferno!
Esses hereges dizem que não existe Deus! Eles dizem que se Deus existisse não existiriam coisas ruins no mundo. Dizem que se Deus existisse não existiria morte, não existiria fome, não existiria dor. Mas eles estão errados, irmãos. Deus não quer o mal, Deus não faz o mal, o mal vem de nós mesmos! Nós somos a causa do mal, é a falta de fé em Deus que traz o mal, a morte, a fome, a dor. Quem ama a Deus não teme o mal. Quem ama a Deus aprende com o mal e não dá ouvidos aos ímpios, nunca!
Quando cai sobre nós a fumaça que fecha nossos poros, nos impede de respirar e mata muitos de nós, ela é o mal vindo de Deus? Não irmãos! Aquela fumaça é o castigo enviado por Deus, é o castigo pelos que pecaram em atos e em pensamentos. Mas Deus é bom e faz nascer o bem até mesmo do mal. E o que acontece irmãos? Graças a Deus a fumaça vai se enfraquecendo e muitos de nós criamos resistência a ela e não sofremos mais.
Por que é que isso acontece? Acontece porque Deus nos ama e quer nos mostrar que a fé supera a morte, a fumaça deixa de ser mortal e o povo de deus resiste! A fumaça não nos extermina! É uma lição irmãos, é uma provação para que nos tornemos mais fortes em nossa fé! Mas os ímpios não se convencem! Eles continuam a blasfemar contra Deus e por isso a fumaça um dia volta mais forte e mata mais de nós. Novamente Deus tem piedade e nos faz resistentes, novamente a fumaça enfraquece e Deus espera que aqueles que sobreviveram tenham aprendido a lição. Enquanto houver pecadores, enquanto houver infiéis, a fumaça sempre voltará. É preciso, irmãos, eliminar os hereges! É preciso, irmãos, apagar o pecado da face da terra! É preciso que todos tenhamos fé para que deus não mande mais a fumaça.
E a prancha que cai sobre alguns de nós e nos esmaga? Irmãos, acreditem, a prancha é um aviso de Deus, Ele quer que sejamos perseverantes em nossa fé, Ele quer que sejamos rápidos e que não nos deixemos tomar pela ganância. Muitos saem em busca de alimento e diante da fartura se deixam possuir pela gula, querem mais do que precisam, não lhes basta que Deus lhes tenha dado abundância para que tomem o que necessitam, querem mais, demoram-se junto ao alimento e de lá não saem quando saciados. Não ouvem o mandamento de Deus que ordena que não nos deixemos cair na tentação da gula, não se lembram de Deus, não pensam em Deus, não se mostram humildes perante Deus! E a prancha cai sobre eles e os esmaga. Essa é a razão, irmãos. É o pecado da gula que mata, não a prancha, não Deus!
Temos que combater os hereges entre nós para evitar a fumaça de veneno, temos que combater o pecado dentro de nós para evitar a prancha esmagadora. Temos que ser puros e tementes a Deus, temos que perseverar em nossa fé porque assim Deus será também perseverante em seu amor.
Não esqueçam, irmãos! Combatam os hereges, os ímpios, os pecadores, não dêem ouvidos ao mal. Combatam o pecado fora e dentro de vocês! Não se deixem vencer pela gula, sejam humildes diante da fartura e fiéis diante do Senhor. E, agora, vão em paz irmãos!” E os fiéis se dispersaram entre as frestas das paredes em meio à escuridão.


No outro dia, quando amanhece, os moradores da casa encontram, no chão da cozinha, três baratas mortas. “Pensei que o inseticida não estivesse mais fazendo efeito”, comenta a mãe.

Publicado originalmente em: http://vida-cadela.blogspot.com/2009/08/pregacao.html

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Descoberta

humberto o sousa

João chega de viagem de manhazinha, está cansado, dirigiu a noite toda. A esposa ainda dorme.
Sem fazer barulho, pega o pijama, e se dirige ao banheiro para tomar um banho; ao voltar para o quarto ele vê que a esposa já se levantou e foi preparar um café, o cheiro o atrai para cozinha, senta-se a mesa e fica observando-a. Ela está com quarenta anos e procura manter-se em forma e, com poucas rugas, lembra a garota que ele conheceu há vinte anos. Ela lhe oferece uma xícara de café, mas ele recusa, atrapalharia o seu sono.
Ela vai tomar banho e ele deita-se.
Já está começando a cochilar quando sente que ela deita-se ao seu lado, completamente nua e aninha o corpo junto ao seu, não é sexo que ela procura, ela só quer contar-lhe o que sonhou a noite, todos os dias ela lhe conta o que sonhou. Depois que ela acaba de lhe contar o sonho sai da cama e vai se trocar.
Ele volta a cochilar quando ela o acorda de novo, desta vez com a mão em seu pênis e beijando seu rosto, ele olha para ela suplicante. Ela ignorando o olhar afasta-se, mas a mão insiste em ficar. Ele pede que ela volte a deitar e ela diz que não pode, tem um paciente marcado para as dez horas e, com um “eu te amo” vai embora.
Ele tenta dormir, mas não consegue, está com uma dolorosa ereção.
Levanta-se vai para o banheiro se aliviar e naquele momento tão intimo, quando ele poderia estar possuindo qualquer mulher do mundo, é nela que ele pensa.
Finalmente ele descobre que após vinte anos de casado ele ama a esposa

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Decepção

humberto o sousa

Ela o conheceu no trabalho. Ela recepcionista, ele o patrão.
Ela somente vinte e três anos, ele quase quarenta. Ela corpo perfeito, rosto bonito, simpática e ele acima do peso, careca e com um carisma que faria qualquer pessoa se derreter diante dele.
Ela somente tinha a mãe, que morava em outra cidade e ele, sem família, possuía somente um amigo, Dr. Jarbas, fizeram faculdade juntos e eram sócios na banca de advogados.
No início, ela e o Dr. Almeida, almoçavam juntos e, com o tempo, passaram a jantar juntos, passar finais de semana juntos e finalmente casaram e ela deixou de chamá-lo de Dr. Almeida, ele passou a ser somente o Almeida.
Ela passou a levar uma vida quase que perfeita, ele a enchia de presentes, viagens e carinho. O único problema era que ela queria sexo todos os dias e ele somente de vez em quando, talvez fosse pelo excesso de trabalho. Ela era fogosa na cama, querendo de tudo um pouco e ele adepto do sexo burocrático. Conversaram e decidiram fazer amor uma vez por semana, concessão dela, e ele passaria a ser mais “criativo”.
A infelicidade dela começou dois dias antes de completarem cinco anos de casamento. Ela foi até a loja em que costumava comprar suas roupas intimas e escolheu uma lingerie bem sexy para eles comemorarem a data e a vendedora disse-lhe que seria “melhor” ela escolher outra, intrigada, será que não lhe ficaria bem? Quis saber o motivo e a vendedora relutantemente disse-lhe que o Dr. Almeida, no dia anterior, havia comprado um conjunto semelhante e pedido para embrulhar para presente. Voltou para casa feliz, será que o Almeida estaria ficando “criativo” o suficiente?
Aguardou a data do aniversário ansiosamente e finalmente no dia, nada de presente “criativo”, ela ganhou somente um anel com um imenso diamante o que a deixou decepcionada, será que ele tinha outra?
A dúvida foi crescendo em seu peito e, precisando dividir, ligou para a mãe e juntas bolaram um plano. Ligou para o Almeida contando-lhe que a mãe estava doente e ela iria viajar para cuidar dela, será que ele agüentaria ficar uma semana longe dela?
Ela fez as malas, colocou no carro e viajou, mas somente até a cidade vizinha, hospedou em um hotel, alugou um carro e voltou decidida a seguir marido.
De campana em frente de casa ficou aguardando o marido sair para o trabalho, mas o marido não saiu, pelo contrário, chegou um taxi, buzinou e a garagem foi aberta, o taxi entrou, a garagem foi fechada, dois minutos depois abriu novamente e o taxi partiu. Será que ele teve coragem de trazer a amante para transarem na cama dela?
Ela aguardou trinta minutos e silenciosamente entrou na casa. Com todo cuidado se dirigiu para o quarto do casal e encostou o ouvido na porta e ouviu os gemidos do clímax que se aproximava. Tirou o celular da bolsa e abriu a porta repentinamente. A cena que viu era certamente dantesca: o marido de quatro, peruca de cabelos longos e negros e vestindo a maldita lingerie era enrabado por Jarbas.
Os dois, ao vê-la, imobilizaram-se como se qualquer movimento feito acusasse o que faziam.
Ela, em um movimento ligeiro, atravessou o quarto e abriu a gaveta da cômoda do marido e retirou o revólver que ele ali mantinha para a proteção do casal e apontou para os dois e, com o celular na outra mão bateu várias fotos do casal e, depois, calmamente caminhou até Jarbas, encostou o revólver em sua têmpora e disparou, este desabou por sobre o marido, prendendo-o no chão. Apontando o revólver para o marido ela bateu outras fotos e enviou-as para a mãe.
Olhando para os olhos assustados do marido e dizendo: “Eu te amo tanto”, levou a arma para própria boca, encostando o cano no céu da boca, disparou.

(esta pequena estória é inspirada em um caso contado por Gil Gomes em um programa de rádio a mais de trinta anos)

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

A moça da bicicleta

humberto o sousa


A moça da bicicleta seguia uma rotina diária, chovesse ou fizesse sol: ia pedalar todos os dias no final da tarde na praça da cidade.

Chegava sempre depois das quatro, quando a praça estava relativamente vazia, tendo como os únicos freqüentadores os aposentados com suas intermináveis partidas de dominó ou truco. Partia antes das cinco, hora em que chegavam os praticantes de caminhada que dariam infindáveis voltas em torno da praça, um percurso que conheciam com os olhos fechados.

Ela sempre trajava uma bermuda de ciclismo claramente sem calcinha e camiseta sem mangas. A bicicleta chamava a atenção pela regulagem do assento que era levantado ao máximo, fazendo com que a moça pedalasse quase em pé com a ponta do selim tocando o vão de suas pernas. Certa vez seu pai perguntou-lhe o porquê daquilo e ele, embaraçada, respondeu-lhe que era para exercitar os músculos do bumbum e das coxas.

Enquanto pedalava ela ia pondo os pensamentos em dia Pensava na faculdade que não acabava nunca e ela somente casaria depois de formada. Pensava no ex-namorado que queria dela muito mais que carícias e, como ela fez promessa de casar-se virgem, romperam. Pensava nas amigas que trocavam de namorado toda semana, algumas já com filhos, mal faladas por toda cidade e a mãe proibindo-a de se relacionar com algumas delas. Pensava sobre a melancolia profunda que a acometia e como a amenizava pedalando.

Ela seguia pedalando. Sua face triste aos poucos ia se iluminando aos poucos em um meio sorriso luminoso que era acentuado pelos olhos semicerrados.

Os senhores, que se entretinham com os jogos, ao verem o meio sorriso no rosto dela interrompiam as partidas e começavam a apostar, com toda a discrição, se o momento seria em frente a eles ou no lado oposto, se seria silencioso ou escandaloso e aguardavam.
Neste dia especial foi um show. Ela acelerou as pedaladas e a respiração e de repente o corpo se imobilizou, a bicicleta seguindo somente pela inércia, e, bem em frente às mesas de jogos, ela gritou: “Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhh ... cooooooooooomo éeeee bommmmmmmmmm.” Depois partiu sem olhar para os lados e nem notar os velhinhos que lhe sorriam em solidariedade.

No dia seguinte ela voltaria.

terça-feira, 28 de julho de 2009

Dúvida

humberto o sousa


Durante treze dias menti, as crianças perguntam: “cadê mamãe”, respondo: “tá viajando, o vô tá doente e ela foi cuidar dele”.
Não tenho coragem de contar para eles. Até o bilhete deixado pela maldita trago dobrado na carteira e, sempre que a raiva está esquecida, pego e releio. Não posso deixar esta raiva morrer nunca. Na primeira oportunidade vou lá e mato ela na frente dele. Depois o capo. Só não fui ainda porque não me decidi se o capo na frente dela e depois mato ela na frente dele.
Ninguém ainda sabe do acontecido. Sou sargento da polícia, se todos ficam sabendo acabou minha moral, nenhum bêbado da cidade vai me respeitar mais. Os bandidos já deixaram de respeitar a polícia faz tempo.
Fui pensar em bandido e a raiva foi esquecida. Vou até o banheiro para reler o bilhete:
“Benê,
Gosto muito de você, você é bom pai e bom marido.
Tomei a decisão de partir porque me apaixonei pelo palhaço do circo, fugi com ele.
Depois de tanto tempo casada com você, minha vida ficou um tédio só. Faltava aventura.
Não me queira mal. Fiz isso por te respeitar e não querer te botar chifre morando na mesma casa que você.
Diga para as crianças que mamãe ama muito eles e que quando passar a raiva do papai eu vou ver eles.
Um grande beijo,
Cidinha.”
Tem respeito por mim o caralho, nem os bêbados me respeitam mais. Trocar um sargento da PM por um palhaço de circo mambembe.
Droga, distraído e joguei o bilhete no vaso e dei descarga.
Não preciso mais dele, já sei de cor.
Meu Deus, o que fazer?

Mato a desgraçada primeiro e depois capo ele ou capo ele e depois mato ela?

sábado, 18 de julho de 2009

O último fracasso

humberto o sousa

Ele olha para o céu noturno e se sente pequeno, finito e insignificante.
Olha para o passado e vê que a sua vida foi uma série de fracassos, desilusões e atos insignificantes e não há perspectiva de que o futuro seja melhor.
Senta-se no parapeito, uma garrafa de café e um sanduíche no colo, os pés balançando nervosamente no vazio, e aguarda o amanhecer.
Aos primeiros raios de sol a melancolia transforma-se em arrependimento, não pelo que pretende fazer e sim pela vida que não teve, as loucuras que não cometeu, os porres não tomados e as mulheres que não comeu. Levou uma vidinha burocrática com receio do que as pessoas iriam dizer a seu respeito.
“Minha vida foi uma merda, pelo menos espero ter uma morte apoteótica”.
Este pensamento o deixa feliz, se é que se pode chamar de felicidade a aquele sentimento que era apenas um jato de adrenalina causado pelo pensamento na morte, mas vá lá.
Sente vontade de falar com a mãe, dizer-lhe que a ama, pega o celular e faz a ligação.
-Alô, atende a mãe com voz de sono.
-Oi mãe, sou eu, desculpa estar ligando tão cedo.
-Bom dia filho, eu já deveria ter levantado, hoje é dia de ir ao banco receber a aposentadoria. Ontem fui deitar tarde, teu irmão veio aqui jantar com tua cunhada e os teus sobrinhos.
Pelo tom de voz da mãe ele percebeu que tinha sido um erro ter ligado, mas já era tarde.
-Perdoa mãe, não estava me sentindo bem – era mentira, ele havia esquecido que era aniversário da mãe.
-Mas você deveria ter ligado, ou pelo menos ter pedido pra sirigaita da tua esposa ligar.
-Mãe, foi a senhora que me apresentou ela dizendo que daria uma excelente esposa. Só me casei com ela para te ver feliz.
-Nora é a tua cunhada, que sempre ta ligando para saber se não preciso de nada e filho é o teu irmão que vem me ...
Ele desliga o telefone, não queria continua ouvindo a cantilena da mãe pela enésima vez.
Ele toma café e come o sanduíche enquanto observa o viaduto lá embaixo, já é quase oito horas e, em breve, alguém o veria sentado no topo do prédio, apontaria e chamaria a atenção dos pedestres, alguém ligaria para os bombeiros e outro para os canais de televisão. Os carros parariam e os ocupantes desceriam para observar. Ele pararia a cidade.
Nove horas, a aglomeração lá embaixo está enorme, helicópteros da policia e das televisões circulam o edifício e, ao longe, ele houve a sirene dos bombeiros. Ele vira-se, senta dando as costas para o vazio e olhando para a porta de acesso ao topo do prédio, não queria ser pego distraído.
O celular toca, é o seu irmão.
-É você mesmo que estou vendo pela televisão?
-Sim sou eu mesmo - ele responde com satisfação, pela primeira vez recebia mais atenção do que aquele filha da puta. Te amo, dê um abraço de despedida na Mara e beije as crianças por mim.
Desliga.
Lá embaixo ele ouve as sirenes sendo desligadas, eles chegaram. Quando os bombeiros abrirem a porta ele, dramaticamente, jogara o corpo para traz e será o fim, nada de ficar perdendo tempo dialogando com eles.
Celular toca de novo e é a esposa.
-Teu irmão ligou. To te vendo na televisão. Pare de frescura e venha imediatamente para casa.
-Sim amor.
Desliga bem na hora que a porta se abre e ele salta para frente.
Abre os braços, mostra aos bombeiros a garrafa térmica e diz:
-Desculpem, só sentei aqui para comer meu lanche. Alguém poderia me levar para casa?

terça-feira, 14 de julho de 2009

Talvez

humberto o sousa

Ela estava feliz.
Corria com um sorriso maroto estampado na face. Ela possuía somente treze anos e corria, com seu sorriso, fugindo para o futuro, tendo em mente a última façanha.
Talvez se não fosse boa aluna não teria recebido aquela medalha, acompanhada de um prêmio em dinheiro.
Talvez se, tivesse paciência, esperado a mãe chegar do trabalho para lhe contar a boa notícia o destino teria lhe sorrido mais que o seu sorriso feliz.
Talvez se, no cruzamento à frente, houvesse seguido reto para onde sua mãe trabalhava até dois meses antes, o destino teria lhe reservado mil medalhas.
Talvez se aqueles dois rapazes houvessem sido tão bons alunos quanto ela, não estariam assaltando a casa lotérica bem na hora que ela estava passando correndo com o seu sorriso feliz.
Talvez se o policial, que estava fazendo uma aposta, fosse mais bem treinado não teria sacado a arma e, correndo, sem nenhum sorriso no rosto, começado a atirar para todos os lados.
A menina que corria caiu, ainda sorrindo, com os olhos abertos. No chão ficou como quem olha o azul do céu. Em seu peito desabrochou uma flor vermelha de sangue, destacando ainda mais a sua medalha.
Os jornais dirão que foi mais uma vitima de “bala perdida”, não mencionarão seu sorriso nem sua medalha.
Em uma história de muitos talvez, somente uma certeza: não existe “balas perdidas”. Existe somente a incompetência e o desprezo pela vida.

domingo, 5 de julho de 2009

Sandálias havaianas e a mulher brasileira - Crônica

Muitas pessoas que me conhecem estranham o fato de que não uso sandálias havaianas, somente imitações.
O fato é de carater pessoal e não financeiro.
O motivo: há alguns anos atrás, a dita sandália, veiculou pelas televisões de todo o pais uma peça publicitária incrível, bem produzida, utilizando uma belíssima música de Benito de Paula, "Mulher brasileira".
No tal comercial, ao som da música, desfilavam, em situações em que, necessariamente, elas estariam trajadas sumarissimamente, belas mulheres, sorridentes, felizes e jovens: na praia, na piscina, passeios de lancha, etc., todas com chinelos havaianas.
Depois de assistir umas três ou quatro vezes notei que no meio das beldades não havia uma negra sequer, nem mesmo uma mulata, e que, em sua maioria, as "mulheres brasileiras" eram loiras.
Com certa surpresa descobri, que para os produtores do comercial, as mulheres negras:
a) não ficam bem em trajes sumários;
b) não eram belas;
c) não sorriam e não eram felizes;
d) não iam a praia, piscina e não passeavam de lancha;
e) não usavam sandálias havaianas; e, para minha perplexidade,
f) as negras brasileiras não eram consideradas, por eles, "mulheres brasileiras".
No principio fiquei horrorizado, depois com raiva e, finalmente, senti desprezo. Desprezo pela fábrica da marca que aprovou a peça publicitária, pelo responsável por sua criação e seus produtores.
Em revolta deixei de usa-las.
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quinta-feira, 2 de julho de 2009

O "Predador da Zona Norte" - conto

humberto o sousa
A polícia estava em polvorosa, mais de doze agressões. Foi até criada uma “Força Tarefa”.
Ele atacava os consultórios odontológicos de mulheres dentistas no final do expediente, então a polícia catalogou todos os ditos consultórios, bem como o horário de fechamento, que passaram a ser monitorados por policiais civis em viaturas descaracterizadas com o apoio tático da policia militar.
Tudo isso porque a vítima número onze era a sobrinha de um Desembargador, que cobrou uma ação enérgica do governador. Claro que a Dra. Sobrinha não foi atacada diretamente, era mais feia que briga de foice no escuro, mas foi amarrada e amordaçada enquanto a sua auxiliar era brutalmente estuprada em sua presença. A Dra. Sobrinha ficou traumatizada, fechou a clinica e os policiais comentavam que foi por não ter sido ela a brutalmente estuprada.
Talvez por instinto, ou espírito de preservação, o estuprador, batizado pela imprensa sensacionalista de ”Predador da Zona Norte”, que quase foi preso no décimo segundo ataque, mudou de tática. Com uma boneca de pano cuidadosamente enrolada em um cobertozinho, dizendo que a sua filhinha estava com quarenta graus de febre, convenceu uma pediatra a reabrir a clinica para atendê-lo, e não deu outra. Alertados pelos funcionários da padaria localizada ao lado da clinica, que ouviram gritos, os policiais invadiram o estabelecimento e pegaram-no em flagrante, só de meias e camiseta, montado em cima da Dra. Japonesinha, totalmente nua, que era espancada violentamente com socos no rosto.
O “Predador” foi levado, depois de ser obrigado a se vestir entre tapas e safanões, para a delegacia do bairro e a vítima entre a vida e a morte, mas ainda nua, levada pelo helicóptero ambulância dos bombeiros diretamente para o Hospital das Clinicas.
...

A noticia da prisão do estuprador “vazou” para a imprensa e quando a viatura chegou com o preso, a delegacia estava cercada por repórteres, cinegrafistas e caminhões das grandes redes de televisão. Levaram quase dez minutos para atravessar o ultimo quarteirão até o distrito.
Os policiais desembarcaram e escoltaram o individuo para o interior e o trancaram em uma sala, dois deles, mais exaltados, pediram e foram atendidos, se trancaram junto e o que se passou lá dentro é um segredo profissional.
Uma hora depois o coitado andando com dificuldade foi levado à presença do Sr. Bacharel (Bel para os íntimos) de Direito Doutor Delegado e o escrivão para ser tomado o depoimento e o Dr. Delegado perguntou-lhe se o sangue que lhe cobria a camiseta era da vitima.
-Não seu dotô, é meu mesmo.
-Você será levado para o IML para fazer o exame de corpo delito, se você falar que os ferimentos que causaram este sangramento foram feito por algum policial você estará se complicando ainda mais.
-Num vô não seu dotô, us policia só me bateram nas minhas partes cum todo cuidado pru modi num machucá. Quem tirô sangue deu foi a dotora.
-Então foi por ela ter te machucado é que você quase matou ela na porrada.
-Não senhor.
-Então foi por quê?
Ele não responde, fica olhando para as mãos com os olhos distantes. O delegado pergunta para o escrivão qual era o nome do infeliz, já que ele tinha qualificado o criminoso.
-Olha Nerso ...
-Pode me chamá de Nercim.
O delegado querendo parecer amigável concorda, ele teria que fazer o cretino confessar tudo, os doze ataques anteriores e o ataque e a agressão atual, não poderia ficar esperando depoimento das vítimas, que envergonhadas, não apareceriam.
-Olha Nercim, você estuprou doze mulh...
-Num foi esse tantim não, foi mais.
-Quantas?
-Sei dize não, só sei qui foi um montão, quase uma por semana desde que vim pra São Paulo.
-E há quanto tempo você mora aqui?
-Quasi um ano.
O escrivão solta um assobio involuntário enquanto o delegado solta um palavrão. Mais uma vez a polícia seria esculhambada por não ter descoberto este maníaco antes. Volta a falar com o tarado à sua frente fingindo uma calma que não sentia, sentia mesmo era vontade de pegar este cretino e pendurá-lo pelos bagos e enviar-lhe todo um cabo de vassoura no rabo.
-Depois, quando eu tomar-lhe oficialmente o depoimento, você falará das outras. Voltando ao assunto da agressão física, quero saber, só por curiosidade, por que você agrediu a pediatra e não as outras. Você usou e abusou delas, mas não agrediu nenhuma fisicamente. Porque somente esta?
-Aconteceu um uns troço isquisitu. Quando eu entrei nela ela começou se mexer e me mordeu, rancó pedaço, aí eu dei um tapa nela e a xota dela começou a ispremé meu pau, foi tão gostoso, aí ela cumeço a ranhá minhas costas cum as unha, eu bati di novu e ela mi ispemeu di novu e começo gritá “bati mais, bati mais ...”. Mi impoguei e comecei a dá uma sova bem dada nela aí us pulicia chegaram e me prendeu.
Curiosidade resolvida, o Dr. Delegado começa a tomar o depoimento, omitindo naturalmente que a Dra. Japonesinha gozava quando apanhava.
...

O Dr. Delegado teve que pedir adiamento para a conclusão do Inquérito por duas vezes, tinha que pegar o depoimento da Pediatra. A coitada, em trinta dias, passou por cinco cirurgias plásticas para reconstituir o maxilar, a mandíbula e o nariz, fora os implantes dentários, havia perdido dois dentes.
Quando finalmente conseguiu autorização dos médicos para tomar-lhe o depoimento a filha-de-uma-puta falou que o sexo fora consensual e a agressão foi acidental.
O que injuriou mais o Dr. Delegado foi saber que ela havia contratado advogado para o tarado e iria depor como testemunha da defesa.
Não adiantou muita coisa o tal advogado caro. Dos trinta e oito casos apurados pelo Dr. Delegado (no início prostitutas de rua, depois empregadas domésticas da periferia que levantavam de madrugada para trabalhar nos bairros nobres e finalmente dentistas), dezessete das vítimas testemunharam e o infeliz foi condenado a uma pena que beirava a eternidade, ou seja, ficaria preso somente trinta anos.
...

Seis meses após o julgamento, jantando com um colega que trabalhava na cidade em que se localizava o presídio que servia de residência permanente para o “Predador”, o Dr. Delegado recebeu uma noticia que o deixou mais puto ainda: a Dra. Japonesinha tinha se mudado para uma cidade vizinha, conseguiu um emprego de Pediatra da prefeitura e havia entrado com um pedido para visitas intimas.

Ilustração: http://www.imotion.com.br/imagens/details.php?image_id=6554

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Incesto

Conto de Divina Scarpim

Eu seduzi meu pai. Ele não foi o cachorro nojento que são os pais que abusam de suas filhas por excesso de álcool e falta de caráter. Foi o homem que amei desde sempre e que me amou para sempre amando a ela em mim. Ele foi a pessoa mais fiel e apaixonada que existiu. Não contei nada a ninguém e nunca contaria não fosse coisa tão antiga, que já não importa mais, e se não fosse a presença constante da dor que sempre esteve comigo desde que soube que viveria sem ele todos os dias de vida que me restavam.

Eles descobriram quando estudaram na mesma turma, aos 16 anos, que tinham muita coisa em comum. Haviam nascido no mesmo dia e na mesma hora no mesmo hospital. O nome da mãe dele era o mesmo nome da mãe dela, o nome do pai dela era o mesmo nome do pai dele. Na primeira meia hora de conversa não conseguiram encontrar muitas diferenças entre eles além dos sobrenomes, continuaram procurando. A procura os tornou amigos e se pesquisaram com a paixão de estarem descobrindo a si mesmos. Tanto se afundaram cada um na personalidade do outro que se apaixonaram e o amor deles era eterno porque cada um amava a si mesmo no outro que amava. Ela engravidou e se casaram. Tinham 18 quando eu vim e ela foi. O pedaço dele que era ela se perdeu e ele quis perder-se também. Segurou-se em mim e sobreviveu. Eu me tornei o pedaço que lhe faltou.

Minha infância foi linda. Tinha todo o seu tempo livre. Poucas vezes soube de alguma namorada, algum caso que ele tivesse nesses anos todos. Sua sinceridade para comigo era total. Não havia segredos, não havia perguntas sem respostas, não havia medo. Quando perguntei de minha mãe ele não disse que ela foi pro céu, não disse que foi fazer uma longa viagem. Disse apenas que morreu. Quando perguntei o que era morrer ele me disse que não sabia muito bem, disse que todas as pessoas e animais um dia deixam de existir, alguns quando já são velhos, outros ainda jovens. Contou-me o que algumas pessoas acreditavam sobre a morte, a opinião de algumas religiões, e quando perguntei em que ele acreditava me disse que não sabia, que gostaria de acreditar em alguma dessas religiões mas não conseguia. Que eu poderia decidir depois, quando fosse maior, em que acreditar. Dizia tudo com tanta sinceridade, com tanta clareza que nada era difícil de compreender. Ele era transparente e seus sentimentos nunca ficavam escondidos para mim. Quando fui à escola ele me levou pela mão e me disse que se eu tivesse alguma dificuldade ele viria me defender. Não precisei ter medo de nada e nunca me senti insegura porque sabia sempre e o tempo todo que podia contar com ele.

Deixava sempre livros pela casa, livros coloridos e ilustrados onde eu podia ver tudo que era vida, natureza, história. Deixava livros de ciências para que eu começasse logo a aprender como era o corpo humano. Nunca me proibia de mexer em alguma coisa. Tudo na casa era meu e nada me era vedado. Fez com que o que era difícil se tornasse fácil, não me assustava a matemática nem a gramática. Não me assustavam as provas nem as crianças maiores do que eu. Ele me punha no colo e me dizia como tudo era lindo e como saber fazia bem, me beijava a testa e me dizia que me amava e que por isso me protegeria sempre. Nunca me falou de bicho papão e quando perguntei o que era me disse que era uma invenção de algumas pessoas que gostavam de assustar crianças. No natal me dava presentes e me ensinou que Papai Noel é alguma coisa que deveria existir. No dia da minha primeira menstruação fez um chá para sarar minha cólica e disse que o que estava acontecendo comigo era a única coisa no mundo que ele conseguia chamar de milagre.

Não sei como começou, não consigo definir a data, sei que quando comecei a entender o que era sexo e comecei a desejar estar com um homem, o homem era ele. Passei a espioná-lo e via sua nudez com deslumbramento. Desejava toca-lo e ser tocada par ele. Sentia ciúmes de toda mulher que o olhasse, procurava sempre dizer que o amava, abraçá-lo e beijá-lo.

Fui insidiosa, sedutora de tal forma que cheguei a apavorá-lo, mas eu o amava e precisava estar com ele. Procurei conversar assuntos mais sérios. Estudei. Falei com ele sobre literatura, filosofia, física e biologia; falei sobre história, religião, ciência; fui divertida, inteligente, agradável. Aprendi a jogar xadrez, tênis e vôlei de praia para ser parceira dele em todos os momentos. Ele só sentia falta de outra mulher quando pensava em sexo. Eu providenciei para que nesses momentos ele também começasse a pensar em mim.

Um dia nos beijamos, foi o primeiro beijo de homem e mulher. Eu o provoquei, é claro. Estávamos em férias em um hotel fazenda e ele foi ao meu quarto deixar minha mala, convidei-o para ir à piscina, provoquei uma competição de nado, mostrei os dois biquínis que trouxera e pedi sua opinião sobre qual deles seria mais confortável para que eu o derrotasse, ele brincou que nem com pés de pato eu ganharia dele, eu disse sim, ele disse não, eu chequei mais perto e o beijei. Ele correspondeu e depois saiu correndo do quarto dizendo “Meu Deus o que foi que eu fiz?”

Eu me vesti, coloquei uma saída de praia e bati na porta do quarto dele perguntando se já estava pronto para ser derrotado. Ele demorou um pouco mas saiu e fomos nadar como se não tivesse acontecido nada. Na hora do jantar eu entrei no assunto para dizer que o beijo tinha sido por culpa unicamente minha e que eu o fizera porque o amava. Ele tentou rebater meus argumentos, tentou mesmo! Tentou até fugir de mim, chegou a afirmar que talvez fosse bom que a gente se afastasse, depois propôs que eu fosse estudar em outra cidade, ele alugaria um apartamento pequeno para mim e a gente se veria nos finais de semana, eu teria tempo para pensar melhor e descobriria, convivendo com rapazes da minha idade, que estava cometendo um erro, que aquilo tudo era loucura. Afirmou que me amava muito, muitíssimo mesmo, mais até do que ele poderia por em palavras, mas não poderia nunca me amar daquela forma, estava errado, não podia acontecer nunca, seria um crime. Enfim, ele se justificou, explicou, usou todos os argumentos que a lei e a ética defendem e eu continuei afirmando que meu caso era diferente. Fui pra faculdade em outra cidade, tive um apartamento pequeno e agradável e via-o todo fim de semana.

Todas as vezes que a gente se via ele me perguntava sobre namorados, todas as vezes eu respondia que o único homem do mundo que me interessava era ele. Uma noite falamos muito e bebemos bastante no restaurante próximo do meu apartamento, eu o convenci a subir para pegar uma conta que precisava ser paga e me aproveitei da fragilidade dele. Ele tinha acabado de terminar um romance, estava sensível e vulnerável, eu me aproveitei e acabamos fazendo sexo. Ah, como foi mágico! O beijo já tinha sido algo fantástico, o sexo foi o superlativo dele. Desde aquele dia, todo fim de semana ele dormia comigo. Foi tão bom quando ele finalmente se entregou! Ficávamos na minha casa, ficávamos na casa dele, nas férias viajávamos. Tudo era perfeito! Se ele dizia alguma coisa que denotasse seus sentimentos de culpa eu o dissuadia afirmando novamente e novamente, de forma sincera e convincente que ele jamais me seduzira, que ele jamais cometera crime nenhum, tudo foi iniciativa minha e o que estávamos vivendo era tudo que eu queria na vida. Ele então se deixava amar e retribuía meu amor como um amante, um namorado, um amigo.

Nosso único problema era não permitir que ninguém descobrisse, então inventei um namorado, ele inventou uma namorada e sempre usávamos esses dois personagens fictícios em nossas conversas com estranhos.

Fui feliz. Fomos felizes. Tão felizes que duvido muito se alguém no mundo foi sequer um dia tão feliz quanto fui por anos. Mas ele ficou doente, um tumor na cabeça o tirou de mim rápida e dolorosamente e, quando ele morreu, meu único consolo foi poder chorar e chorar muito sem ter que esconder de ninguém a minha tristeza. Para o mundo eu era uma filha sofrendo a perda de um pai, para mim mesma era muito, muito mais do que um pai que estava perdendo, era toda a minha possibilidade de ser feliz que se ia para sempre.

Eu estava certa. Muitas vezes mais chorei. Nunca mais fui feliz mas nunca me arrependi. Se tivesse resistido aos meus sentimentos, se não o tivesse convencido a aceitar os dele, se o não tivesse transformado no meu amor, certamente não teria hoje meu único bem: a lembrança da felicidade que tive...


Postado originalmente em "Vida Cadela" :
http://vida-cadela.blogspot.com/2009/06/incesto.html

domingo, 7 de junho de 2009

A troca

humberto o sousa

Aquele era um daqueles dias em que nada deu certo e para encerrar o dia chegou atrasado na faculdade, perdendo a vaga do estacionamento, próximo ao prédio principal, tendo que estacionar na extremidade oposta.
Contrariado, estava pegando seu material quando ouviu um carro estacionando ao seu lado e o motorista, antes de desligar o carro, deu uma pequena acelerada, isto fez com que tivesse um início de ereção e, somente então, virou-se para olhar para o veículo ao lado.
O carro era um Passat de uns trinta anos, de cor cinza que o fazia pensar em geladeira e que parecia ter sido pintado a pincel. A motorista era uma mulatinha de traços miúdos, nariz fino e arrebitado e os cabelos, cortados chanel, alisados e tingidos de castanho claro.
Ele descobriu que estava apaixonado, pegou suas coisas correndo e saiu atrás dela. Ela era baixinha, tinha passos curtos e ligeiros e, com os pés levemente voltados para dentro, possuía um rebolado duro (com uma bundinha que gritava para o mundo “tenho, mas não te dou”). Decidiu que tinha que descobrir onde era a sala dela, qual o seu nome, o curso que fazia, ele tinha que falar com ela, tinha que lhe fazer a oferta.
Na saída, decepção, a vaga ao seu lado estava vazia, ela já tinha ido.
Nos dias seguintes, ele passou a chegar cedo, mas em vez de estacionar em sua vaga habitual, parava lá no fim do estacionamento e ficava esperando. Ela chegava sempre no mesmo horário, estacionava no mesmo lugar, a mesma acelerada antes de desligar (o que fazia com que ele tivesse ereções), o mesmo caminhar ligeiro de rebolado duro (“tenho, mas não te dou”). E ele a seguia.
Descobriu que se chamava Mariana, tinha 22 anos, estava no 3° de Matemática (ele não a tinha visto antes porque veio transferida de outro campus recentemente), no intervalo, na lanchonete, sempre comia uma esfiha com bastante molho de pimenta e tomava uma coca.
Uma semana depois ele tomou coragem e foi até ela – “Posso te pagar uma coca?”.
- Sim – Sua voz era suave e agradável.
Aproveitou e pagou-lhe também a esfiha e gentilmente foi buscar o molho de pimenta.
Na saída, ele já a estava esperando para acompanhá-la até o carro, e se ofereceu para carregar a sua pesada pasta. Ela timidamente aceitou. Caminharam lentamente até o carro dela, conversando sobre o tempo, sobre os respectivos cursos, sobre as expectativas para o futuro (ela iria ser professora de matemática como a mãe). Quando enfim chegaram aos carros ele lhe disse –“Amanhã e sexta feira, que tal se depois das aulas nos fossemos tomar alguma coisa?”.
- Adoraria, mas só se dividirmos a conta.

O dia seguinte passou lentamente, a ansiedade fez com que as horas não passassem.
Chegou mais cedo que o habitual ao estacionamento e quando ela enfim chegou, vinha com a mãe, que, apesar de branca e loira, era uma cópia envelhecida dela. Alguém já escreveu que para sabermos como será nossa esposa daqui a vinte ou trinta anos devemos olhar para a futura sogra, e ela quando estivesse com uns quarenta anos ainda seria desejável. Despediu-se da mãe, que levou o Passat embora, e foram caminhando, calados, sem nada para dizer um ao outro até o prédio.

Na saída ela já estava esperando, pegaram o carro dele e foram a um barzinho fora do circuito dos estudantes, ele não queria que nenhum conhecido atrapalhasse a conversa que ele tinha que ter com ela.
Depois de duas rodadas de chope, com ela já bem alegre, ele resolveu que era chegado o momento: “Olha Mariana, você deve ter notado que desde que nos vimos pela primeira vez eu tenho demonstrado certo interesse”.
-Eu também, sinto algo desde que te vi pela primeira vez.
Então fez a proposta.
Ela o olhou com os olhos arregalados, não acreditando no que estava ouvindo e sem nada melhor para dizer só perguntou - Pra que?
Contou seus motivos, e ela com lagrimas nos olhos, negou-se com veemência. Ele insistiu.
Ela disse que precisava falar com a mãe, pedir permissão, ele estranhou, mas concordou. Ela levantou e afastou-se da mesa, pegou o celular e, após teclar, começou a falar em voz baixa, tapando com a mão em concha o bocal para abafar o som do ambiente, concordou com a cabeça com algo que a mãe disse e passou-lhe o celular.
“Alo”.
-Por que você deseja trocar um carro praticamente novo por um de trinta anos caindo aos pedaços? Perguntou-lhe a voz autoritária do outro lado.
“Olha, eu sempre quis ter um como este e quando ouvi o som do motor do carro da Mariana sabia que era o que estava esperando”.
-Por que você sempre quis ter um carro como este?
“Eu sei que você deve estar estranhando, trocar um carro de dois anos por um de trinta, assim sem mais nem menos, mas é sonho de infância, ter um Passat verde musgo, teto solar e rodas de liga leve, claro que terei que reformá-lo, mas isso não vem ao caso”.
-Com o dinheiro que você iria gastar não seria o caso de comprar um já pronto, não sairia mais barato?
“A senhora não entende, foi o som do motor”.
-Uma última pergunta, a Mariana tem a mania do pai dela, acelerar o carro antes de desligar, foi isso que chamou tua atenção?
Ele concordou.
-O meu falecido marido tinha a mesma mania, quando ouvi pela primeira vez me apaixonei, só que pelo motorista e não pelo carro, me deixa falar com minha filha.
Devolvi o celular para Mariana, ela ouviu atentamente o que a mãe lhe dizia e desligou, virou-se para ele e disse – Me leve para casa.
O percurso foi feito em um silencio constrangido.
-Tenho que te contar uma coisa, disse ela quando chegaram ao prédio em que ela morava enquanto ele olhava o Passat.
-Não posso me desfazer desse carro, foi o primeiro carro que meu pai comprou, quando conheceu minha mãe era esse carro que ele dirigia e, segundo minha mãe, fui gerada no banco ai atrás. Meu pai sempre dizia que não podia vender por causa disso, e deixou-o para mim.
Minha mãe acha que isto é besteira e que devo aceitar.
“Olha, vou cuidar bem dele”.
-Tudo bem então, mas com uma condição, quando acabar a reforma quero que você me leve para dirigi-lo um pouco.
Ele concordou e eles trocaram as chaves e os documentos
Enquanto ela se dirigia para o portão de entrada do prédio, ele ficou acompanhando com os olhos aquele rebolado “tenho, mas não te dou” dela.
“Bem, até que ela não é de se jogar fora e este banco traseiro parece confortável”.

domingo, 17 de maio de 2009

Graças

humberto o sousa


“Lembro-me que, devia ter uns seis anos, nosso pai vinha almoçar todos os dias em casa.
Um dia, durante o almoço, meu pai encontrou alguma coisa na salada que não devia estar lá, chamou minha mãe para olhar, com um berro, minha mãe levantou de seu lugar e caminhou toda encolhida em direção à cabeceira da mesa e olhava assustada para o que ele apontava, com o garfo, em seu prato. Depois ele pegou o prato e arremessou com violência contra a parede, levantou-se e mandou que eu e meus irmãos fôssemos-mos brincar no quintal, trancando a porta violentamente. Nós ficamos encostados contra a parede tristes e cabisbaixos.
Lá dentro, durante meia hora, ouvíamos o barulho de louças sendo quebradas e os gritos dele dizendo “é só para isso que você serve”. Quando ele finalmente saiu, corremos para o fundo do quintal, ignorando-nos caminhou calmamente para rua carregando uma sacola.
Entramos em casa e vimos minha mãe sentada no chão, vestido rasgado, com a cabeça baixa. Corremos para ela e ficamos calados à sua volta, ela levantou a cabeça e tentou sorrir. Seus lábios estavam partidos e sangrando, seu olho esquerdo, totalmente fechado,
Parecia uma bola de bilhar roxa.
Ajudamos a se levantar e ela, andando com dificuldade, tentando ajeitar os cabelos foi até a cozinha, nós atrás, procurar algo para comer-mos, as panelas sobre o fogão estavam vazias, a comida no lixo, tudo o que havia na geladeira e na despensa ele levou na sacola. Minha mãe achou somente açúcar e fubá e, com isso, nos fez um mingau, não me esqueço do gosto até hoje.”
-Por que está me contando tudo isso? Nós mal nos conhecemos.
-Ainda não acabei. Conheço-te há meia hora e algo me diz que posso confiar em você.
Posso continuar?
-Sim.
“Não me lembro se comemos mais alguma coisa naquele dia.
Uns dois anos depois meu pai morreu, foram quase dois anos de agressões, somente eu escapava, mas meus irmãos e minha mão sofriam.
Pouco antes de morrer ele mudou, levava-nos para passear, a família toda, antes só levava eu e meus irmãos, minha mãe até parecia feliz.
Morreu de enfarte.
No velório, na hora de fechar o caixão, minha mãe, abraçada com os filhos, ficou junto de meu pai, orando, acho que meus irmãos também oravam, eu só pensava “Graças a Deus que ele morreu”. Carregava isto até ontem, este sentimento de culpa. Ele lá morto e eu só pensando “Graças a Deus...”.
Ontem falei para a minha mãe que iria trancar a faculdade. Sabe o que ela me disse?
Se teu pai fosse vivo você nem pensaria em largar a faculdade”.
“Se ele ainda estivesse vivo eu, ou um de meus irmãos, teríamos acabado com ele, e ele continuaria morto e eu pararia a faculdade do mesmo jeito. Quando ele morreu eu, junto ao caixão, só dava graças a Deus
”. Respondi.
Minha mãe começou a chorar me abraçou dizendo: “Eu também minha filha”.