segunda-feira, 15 de junho de 2009

Incesto

Conto de Divina Scarpim

Eu seduzi meu pai. Ele não foi o cachorro nojento que são os pais que abusam de suas filhas por excesso de álcool e falta de caráter. Foi o homem que amei desde sempre e que me amou para sempre amando a ela em mim. Ele foi a pessoa mais fiel e apaixonada que existiu. Não contei nada a ninguém e nunca contaria não fosse coisa tão antiga, que já não importa mais, e se não fosse a presença constante da dor que sempre esteve comigo desde que soube que viveria sem ele todos os dias de vida que me restavam.

Eles descobriram quando estudaram na mesma turma, aos 16 anos, que tinham muita coisa em comum. Haviam nascido no mesmo dia e na mesma hora no mesmo hospital. O nome da mãe dele era o mesmo nome da mãe dela, o nome do pai dela era o mesmo nome do pai dele. Na primeira meia hora de conversa não conseguiram encontrar muitas diferenças entre eles além dos sobrenomes, continuaram procurando. A procura os tornou amigos e se pesquisaram com a paixão de estarem descobrindo a si mesmos. Tanto se afundaram cada um na personalidade do outro que se apaixonaram e o amor deles era eterno porque cada um amava a si mesmo no outro que amava. Ela engravidou e se casaram. Tinham 18 quando eu vim e ela foi. O pedaço dele que era ela se perdeu e ele quis perder-se também. Segurou-se em mim e sobreviveu. Eu me tornei o pedaço que lhe faltou.

Minha infância foi linda. Tinha todo o seu tempo livre. Poucas vezes soube de alguma namorada, algum caso que ele tivesse nesses anos todos. Sua sinceridade para comigo era total. Não havia segredos, não havia perguntas sem respostas, não havia medo. Quando perguntei de minha mãe ele não disse que ela foi pro céu, não disse que foi fazer uma longa viagem. Disse apenas que morreu. Quando perguntei o que era morrer ele me disse que não sabia muito bem, disse que todas as pessoas e animais um dia deixam de existir, alguns quando já são velhos, outros ainda jovens. Contou-me o que algumas pessoas acreditavam sobre a morte, a opinião de algumas religiões, e quando perguntei em que ele acreditava me disse que não sabia, que gostaria de acreditar em alguma dessas religiões mas não conseguia. Que eu poderia decidir depois, quando fosse maior, em que acreditar. Dizia tudo com tanta sinceridade, com tanta clareza que nada era difícil de compreender. Ele era transparente e seus sentimentos nunca ficavam escondidos para mim. Quando fui à escola ele me levou pela mão e me disse que se eu tivesse alguma dificuldade ele viria me defender. Não precisei ter medo de nada e nunca me senti insegura porque sabia sempre e o tempo todo que podia contar com ele.

Deixava sempre livros pela casa, livros coloridos e ilustrados onde eu podia ver tudo que era vida, natureza, história. Deixava livros de ciências para que eu começasse logo a aprender como era o corpo humano. Nunca me proibia de mexer em alguma coisa. Tudo na casa era meu e nada me era vedado. Fez com que o que era difícil se tornasse fácil, não me assustava a matemática nem a gramática. Não me assustavam as provas nem as crianças maiores do que eu. Ele me punha no colo e me dizia como tudo era lindo e como saber fazia bem, me beijava a testa e me dizia que me amava e que por isso me protegeria sempre. Nunca me falou de bicho papão e quando perguntei o que era me disse que era uma invenção de algumas pessoas que gostavam de assustar crianças. No natal me dava presentes e me ensinou que Papai Noel é alguma coisa que deveria existir. No dia da minha primeira menstruação fez um chá para sarar minha cólica e disse que o que estava acontecendo comigo era a única coisa no mundo que ele conseguia chamar de milagre.

Não sei como começou, não consigo definir a data, sei que quando comecei a entender o que era sexo e comecei a desejar estar com um homem, o homem era ele. Passei a espioná-lo e via sua nudez com deslumbramento. Desejava toca-lo e ser tocada par ele. Sentia ciúmes de toda mulher que o olhasse, procurava sempre dizer que o amava, abraçá-lo e beijá-lo.

Fui insidiosa, sedutora de tal forma que cheguei a apavorá-lo, mas eu o amava e precisava estar com ele. Procurei conversar assuntos mais sérios. Estudei. Falei com ele sobre literatura, filosofia, física e biologia; falei sobre história, religião, ciência; fui divertida, inteligente, agradável. Aprendi a jogar xadrez, tênis e vôlei de praia para ser parceira dele em todos os momentos. Ele só sentia falta de outra mulher quando pensava em sexo. Eu providenciei para que nesses momentos ele também começasse a pensar em mim.

Um dia nos beijamos, foi o primeiro beijo de homem e mulher. Eu o provoquei, é claro. Estávamos em férias em um hotel fazenda e ele foi ao meu quarto deixar minha mala, convidei-o para ir à piscina, provoquei uma competição de nado, mostrei os dois biquínis que trouxera e pedi sua opinião sobre qual deles seria mais confortável para que eu o derrotasse, ele brincou que nem com pés de pato eu ganharia dele, eu disse sim, ele disse não, eu chequei mais perto e o beijei. Ele correspondeu e depois saiu correndo do quarto dizendo “Meu Deus o que foi que eu fiz?”

Eu me vesti, coloquei uma saída de praia e bati na porta do quarto dele perguntando se já estava pronto para ser derrotado. Ele demorou um pouco mas saiu e fomos nadar como se não tivesse acontecido nada. Na hora do jantar eu entrei no assunto para dizer que o beijo tinha sido por culpa unicamente minha e que eu o fizera porque o amava. Ele tentou rebater meus argumentos, tentou mesmo! Tentou até fugir de mim, chegou a afirmar que talvez fosse bom que a gente se afastasse, depois propôs que eu fosse estudar em outra cidade, ele alugaria um apartamento pequeno para mim e a gente se veria nos finais de semana, eu teria tempo para pensar melhor e descobriria, convivendo com rapazes da minha idade, que estava cometendo um erro, que aquilo tudo era loucura. Afirmou que me amava muito, muitíssimo mesmo, mais até do que ele poderia por em palavras, mas não poderia nunca me amar daquela forma, estava errado, não podia acontecer nunca, seria um crime. Enfim, ele se justificou, explicou, usou todos os argumentos que a lei e a ética defendem e eu continuei afirmando que meu caso era diferente. Fui pra faculdade em outra cidade, tive um apartamento pequeno e agradável e via-o todo fim de semana.

Todas as vezes que a gente se via ele me perguntava sobre namorados, todas as vezes eu respondia que o único homem do mundo que me interessava era ele. Uma noite falamos muito e bebemos bastante no restaurante próximo do meu apartamento, eu o convenci a subir para pegar uma conta que precisava ser paga e me aproveitei da fragilidade dele. Ele tinha acabado de terminar um romance, estava sensível e vulnerável, eu me aproveitei e acabamos fazendo sexo. Ah, como foi mágico! O beijo já tinha sido algo fantástico, o sexo foi o superlativo dele. Desde aquele dia, todo fim de semana ele dormia comigo. Foi tão bom quando ele finalmente se entregou! Ficávamos na minha casa, ficávamos na casa dele, nas férias viajávamos. Tudo era perfeito! Se ele dizia alguma coisa que denotasse seus sentimentos de culpa eu o dissuadia afirmando novamente e novamente, de forma sincera e convincente que ele jamais me seduzira, que ele jamais cometera crime nenhum, tudo foi iniciativa minha e o que estávamos vivendo era tudo que eu queria na vida. Ele então se deixava amar e retribuía meu amor como um amante, um namorado, um amigo.

Nosso único problema era não permitir que ninguém descobrisse, então inventei um namorado, ele inventou uma namorada e sempre usávamos esses dois personagens fictícios em nossas conversas com estranhos.

Fui feliz. Fomos felizes. Tão felizes que duvido muito se alguém no mundo foi sequer um dia tão feliz quanto fui por anos. Mas ele ficou doente, um tumor na cabeça o tirou de mim rápida e dolorosamente e, quando ele morreu, meu único consolo foi poder chorar e chorar muito sem ter que esconder de ninguém a minha tristeza. Para o mundo eu era uma filha sofrendo a perda de um pai, para mim mesma era muito, muito mais do que um pai que estava perdendo, era toda a minha possibilidade de ser feliz que se ia para sempre.

Eu estava certa. Muitas vezes mais chorei. Nunca mais fui feliz mas nunca me arrependi. Se tivesse resistido aos meus sentimentos, se não o tivesse convencido a aceitar os dele, se o não tivesse transformado no meu amor, certamente não teria hoje meu único bem: a lembrança da felicidade que tive...


Postado originalmente em "Vida Cadela" :
http://vida-cadela.blogspot.com/2009/06/incesto.html

domingo, 7 de junho de 2009

A troca

humberto o sousa

Aquele era um daqueles dias em que nada deu certo e para encerrar o dia chegou atrasado na faculdade, perdendo a vaga do estacionamento, próximo ao prédio principal, tendo que estacionar na extremidade oposta.
Contrariado, estava pegando seu material quando ouviu um carro estacionando ao seu lado e o motorista, antes de desligar o carro, deu uma pequena acelerada, isto fez com que tivesse um início de ereção e, somente então, virou-se para olhar para o veículo ao lado.
O carro era um Passat de uns trinta anos, de cor cinza que o fazia pensar em geladeira e que parecia ter sido pintado a pincel. A motorista era uma mulatinha de traços miúdos, nariz fino e arrebitado e os cabelos, cortados chanel, alisados e tingidos de castanho claro.
Ele descobriu que estava apaixonado, pegou suas coisas correndo e saiu atrás dela. Ela era baixinha, tinha passos curtos e ligeiros e, com os pés levemente voltados para dentro, possuía um rebolado duro (com uma bundinha que gritava para o mundo “tenho, mas não te dou”). Decidiu que tinha que descobrir onde era a sala dela, qual o seu nome, o curso que fazia, ele tinha que falar com ela, tinha que lhe fazer a oferta.
Na saída, decepção, a vaga ao seu lado estava vazia, ela já tinha ido.
Nos dias seguintes, ele passou a chegar cedo, mas em vez de estacionar em sua vaga habitual, parava lá no fim do estacionamento e ficava esperando. Ela chegava sempre no mesmo horário, estacionava no mesmo lugar, a mesma acelerada antes de desligar (o que fazia com que ele tivesse ereções), o mesmo caminhar ligeiro de rebolado duro (“tenho, mas não te dou”). E ele a seguia.
Descobriu que se chamava Mariana, tinha 22 anos, estava no 3° de Matemática (ele não a tinha visto antes porque veio transferida de outro campus recentemente), no intervalo, na lanchonete, sempre comia uma esfiha com bastante molho de pimenta e tomava uma coca.
Uma semana depois ele tomou coragem e foi até ela – “Posso te pagar uma coca?”.
- Sim – Sua voz era suave e agradável.
Aproveitou e pagou-lhe também a esfiha e gentilmente foi buscar o molho de pimenta.
Na saída, ele já a estava esperando para acompanhá-la até o carro, e se ofereceu para carregar a sua pesada pasta. Ela timidamente aceitou. Caminharam lentamente até o carro dela, conversando sobre o tempo, sobre os respectivos cursos, sobre as expectativas para o futuro (ela iria ser professora de matemática como a mãe). Quando enfim chegaram aos carros ele lhe disse –“Amanhã e sexta feira, que tal se depois das aulas nos fossemos tomar alguma coisa?”.
- Adoraria, mas só se dividirmos a conta.

O dia seguinte passou lentamente, a ansiedade fez com que as horas não passassem.
Chegou mais cedo que o habitual ao estacionamento e quando ela enfim chegou, vinha com a mãe, que, apesar de branca e loira, era uma cópia envelhecida dela. Alguém já escreveu que para sabermos como será nossa esposa daqui a vinte ou trinta anos devemos olhar para a futura sogra, e ela quando estivesse com uns quarenta anos ainda seria desejável. Despediu-se da mãe, que levou o Passat embora, e foram caminhando, calados, sem nada para dizer um ao outro até o prédio.

Na saída ela já estava esperando, pegaram o carro dele e foram a um barzinho fora do circuito dos estudantes, ele não queria que nenhum conhecido atrapalhasse a conversa que ele tinha que ter com ela.
Depois de duas rodadas de chope, com ela já bem alegre, ele resolveu que era chegado o momento: “Olha Mariana, você deve ter notado que desde que nos vimos pela primeira vez eu tenho demonstrado certo interesse”.
-Eu também, sinto algo desde que te vi pela primeira vez.
Então fez a proposta.
Ela o olhou com os olhos arregalados, não acreditando no que estava ouvindo e sem nada melhor para dizer só perguntou - Pra que?
Contou seus motivos, e ela com lagrimas nos olhos, negou-se com veemência. Ele insistiu.
Ela disse que precisava falar com a mãe, pedir permissão, ele estranhou, mas concordou. Ela levantou e afastou-se da mesa, pegou o celular e, após teclar, começou a falar em voz baixa, tapando com a mão em concha o bocal para abafar o som do ambiente, concordou com a cabeça com algo que a mãe disse e passou-lhe o celular.
“Alo”.
-Por que você deseja trocar um carro praticamente novo por um de trinta anos caindo aos pedaços? Perguntou-lhe a voz autoritária do outro lado.
“Olha, eu sempre quis ter um como este e quando ouvi o som do motor do carro da Mariana sabia que era o que estava esperando”.
-Por que você sempre quis ter um carro como este?
“Eu sei que você deve estar estranhando, trocar um carro de dois anos por um de trinta, assim sem mais nem menos, mas é sonho de infância, ter um Passat verde musgo, teto solar e rodas de liga leve, claro que terei que reformá-lo, mas isso não vem ao caso”.
-Com o dinheiro que você iria gastar não seria o caso de comprar um já pronto, não sairia mais barato?
“A senhora não entende, foi o som do motor”.
-Uma última pergunta, a Mariana tem a mania do pai dela, acelerar o carro antes de desligar, foi isso que chamou tua atenção?
Ele concordou.
-O meu falecido marido tinha a mesma mania, quando ouvi pela primeira vez me apaixonei, só que pelo motorista e não pelo carro, me deixa falar com minha filha.
Devolvi o celular para Mariana, ela ouviu atentamente o que a mãe lhe dizia e desligou, virou-se para ele e disse – Me leve para casa.
O percurso foi feito em um silencio constrangido.
-Tenho que te contar uma coisa, disse ela quando chegaram ao prédio em que ela morava enquanto ele olhava o Passat.
-Não posso me desfazer desse carro, foi o primeiro carro que meu pai comprou, quando conheceu minha mãe era esse carro que ele dirigia e, segundo minha mãe, fui gerada no banco ai atrás. Meu pai sempre dizia que não podia vender por causa disso, e deixou-o para mim.
Minha mãe acha que isto é besteira e que devo aceitar.
“Olha, vou cuidar bem dele”.
-Tudo bem então, mas com uma condição, quando acabar a reforma quero que você me leve para dirigi-lo um pouco.
Ele concordou e eles trocaram as chaves e os documentos
Enquanto ela se dirigia para o portão de entrada do prédio, ele ficou acompanhando com os olhos aquele rebolado “tenho, mas não te dou” dela.
“Bem, até que ela não é de se jogar fora e este banco traseiro parece confortável”.