domingo, 17 de maio de 2009

Graças

humberto o sousa


“Lembro-me que, devia ter uns seis anos, nosso pai vinha almoçar todos os dias em casa.
Um dia, durante o almoço, meu pai encontrou alguma coisa na salada que não devia estar lá, chamou minha mãe para olhar, com um berro, minha mãe levantou de seu lugar e caminhou toda encolhida em direção à cabeceira da mesa e olhava assustada para o que ele apontava, com o garfo, em seu prato. Depois ele pegou o prato e arremessou com violência contra a parede, levantou-se e mandou que eu e meus irmãos fôssemos-mos brincar no quintal, trancando a porta violentamente. Nós ficamos encostados contra a parede tristes e cabisbaixos.
Lá dentro, durante meia hora, ouvíamos o barulho de louças sendo quebradas e os gritos dele dizendo “é só para isso que você serve”. Quando ele finalmente saiu, corremos para o fundo do quintal, ignorando-nos caminhou calmamente para rua carregando uma sacola.
Entramos em casa e vimos minha mãe sentada no chão, vestido rasgado, com a cabeça baixa. Corremos para ela e ficamos calados à sua volta, ela levantou a cabeça e tentou sorrir. Seus lábios estavam partidos e sangrando, seu olho esquerdo, totalmente fechado,
Parecia uma bola de bilhar roxa.
Ajudamos a se levantar e ela, andando com dificuldade, tentando ajeitar os cabelos foi até a cozinha, nós atrás, procurar algo para comer-mos, as panelas sobre o fogão estavam vazias, a comida no lixo, tudo o que havia na geladeira e na despensa ele levou na sacola. Minha mãe achou somente açúcar e fubá e, com isso, nos fez um mingau, não me esqueço do gosto até hoje.”
-Por que está me contando tudo isso? Nós mal nos conhecemos.
-Ainda não acabei. Conheço-te há meia hora e algo me diz que posso confiar em você.
Posso continuar?
-Sim.
“Não me lembro se comemos mais alguma coisa naquele dia.
Uns dois anos depois meu pai morreu, foram quase dois anos de agressões, somente eu escapava, mas meus irmãos e minha mão sofriam.
Pouco antes de morrer ele mudou, levava-nos para passear, a família toda, antes só levava eu e meus irmãos, minha mãe até parecia feliz.
Morreu de enfarte.
No velório, na hora de fechar o caixão, minha mãe, abraçada com os filhos, ficou junto de meu pai, orando, acho que meus irmãos também oravam, eu só pensava “Graças a Deus que ele morreu”. Carregava isto até ontem, este sentimento de culpa. Ele lá morto e eu só pensando “Graças a Deus...”.
Ontem falei para a minha mãe que iria trancar a faculdade. Sabe o que ela me disse?
Se teu pai fosse vivo você nem pensaria em largar a faculdade”.
“Se ele ainda estivesse vivo eu, ou um de meus irmãos, teríamos acabado com ele, e ele continuaria morto e eu pararia a faculdade do mesmo jeito. Quando ele morreu eu, junto ao caixão, só dava graças a Deus
”. Respondi.
Minha mãe começou a chorar me abraçou dizendo: “Eu também minha filha”.

2 comentários:

  1. Humberto,

    O teu conto é muito bom, adorei. Amigo, há culpas que não conseguimos admitir e deixamos que elas nos persigam a vida inteira.

    Parabéns!
    Grande abraço

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  2. É verdade mesmo. Seu estilo está bem casado com o estilo do meu conto. Também tive um olho roxo na vida...
    Abraços!

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