terça-feira, 28 de julho de 2009

Dúvida

humberto o sousa


Durante treze dias menti, as crianças perguntam: “cadê mamãe”, respondo: “tá viajando, o vô tá doente e ela foi cuidar dele”.
Não tenho coragem de contar para eles. Até o bilhete deixado pela maldita trago dobrado na carteira e, sempre que a raiva está esquecida, pego e releio. Não posso deixar esta raiva morrer nunca. Na primeira oportunidade vou lá e mato ela na frente dele. Depois o capo. Só não fui ainda porque não me decidi se o capo na frente dela e depois mato ela na frente dele.
Ninguém ainda sabe do acontecido. Sou sargento da polícia, se todos ficam sabendo acabou minha moral, nenhum bêbado da cidade vai me respeitar mais. Os bandidos já deixaram de respeitar a polícia faz tempo.
Fui pensar em bandido e a raiva foi esquecida. Vou até o banheiro para reler o bilhete:
“Benê,
Gosto muito de você, você é bom pai e bom marido.
Tomei a decisão de partir porque me apaixonei pelo palhaço do circo, fugi com ele.
Depois de tanto tempo casada com você, minha vida ficou um tédio só. Faltava aventura.
Não me queira mal. Fiz isso por te respeitar e não querer te botar chifre morando na mesma casa que você.
Diga para as crianças que mamãe ama muito eles e que quando passar a raiva do papai eu vou ver eles.
Um grande beijo,
Cidinha.”
Tem respeito por mim o caralho, nem os bêbados me respeitam mais. Trocar um sargento da PM por um palhaço de circo mambembe.
Droga, distraído e joguei o bilhete no vaso e dei descarga.
Não preciso mais dele, já sei de cor.
Meu Deus, o que fazer?

Mato a desgraçada primeiro e depois capo ele ou capo ele e depois mato ela?

sábado, 18 de julho de 2009

O último fracasso

humberto o sousa

Ele olha para o céu noturno e se sente pequeno, finito e insignificante.
Olha para o passado e vê que a sua vida foi uma série de fracassos, desilusões e atos insignificantes e não há perspectiva de que o futuro seja melhor.
Senta-se no parapeito, uma garrafa de café e um sanduíche no colo, os pés balançando nervosamente no vazio, e aguarda o amanhecer.
Aos primeiros raios de sol a melancolia transforma-se em arrependimento, não pelo que pretende fazer e sim pela vida que não teve, as loucuras que não cometeu, os porres não tomados e as mulheres que não comeu. Levou uma vidinha burocrática com receio do que as pessoas iriam dizer a seu respeito.
“Minha vida foi uma merda, pelo menos espero ter uma morte apoteótica”.
Este pensamento o deixa feliz, se é que se pode chamar de felicidade a aquele sentimento que era apenas um jato de adrenalina causado pelo pensamento na morte, mas vá lá.
Sente vontade de falar com a mãe, dizer-lhe que a ama, pega o celular e faz a ligação.
-Alô, atende a mãe com voz de sono.
-Oi mãe, sou eu, desculpa estar ligando tão cedo.
-Bom dia filho, eu já deveria ter levantado, hoje é dia de ir ao banco receber a aposentadoria. Ontem fui deitar tarde, teu irmão veio aqui jantar com tua cunhada e os teus sobrinhos.
Pelo tom de voz da mãe ele percebeu que tinha sido um erro ter ligado, mas já era tarde.
-Perdoa mãe, não estava me sentindo bem – era mentira, ele havia esquecido que era aniversário da mãe.
-Mas você deveria ter ligado, ou pelo menos ter pedido pra sirigaita da tua esposa ligar.
-Mãe, foi a senhora que me apresentou ela dizendo que daria uma excelente esposa. Só me casei com ela para te ver feliz.
-Nora é a tua cunhada, que sempre ta ligando para saber se não preciso de nada e filho é o teu irmão que vem me ...
Ele desliga o telefone, não queria continua ouvindo a cantilena da mãe pela enésima vez.
Ele toma café e come o sanduíche enquanto observa o viaduto lá embaixo, já é quase oito horas e, em breve, alguém o veria sentado no topo do prédio, apontaria e chamaria a atenção dos pedestres, alguém ligaria para os bombeiros e outro para os canais de televisão. Os carros parariam e os ocupantes desceriam para observar. Ele pararia a cidade.
Nove horas, a aglomeração lá embaixo está enorme, helicópteros da policia e das televisões circulam o edifício e, ao longe, ele houve a sirene dos bombeiros. Ele vira-se, senta dando as costas para o vazio e olhando para a porta de acesso ao topo do prédio, não queria ser pego distraído.
O celular toca, é o seu irmão.
-É você mesmo que estou vendo pela televisão?
-Sim sou eu mesmo - ele responde com satisfação, pela primeira vez recebia mais atenção do que aquele filha da puta. Te amo, dê um abraço de despedida na Mara e beije as crianças por mim.
Desliga.
Lá embaixo ele ouve as sirenes sendo desligadas, eles chegaram. Quando os bombeiros abrirem a porta ele, dramaticamente, jogara o corpo para traz e será o fim, nada de ficar perdendo tempo dialogando com eles.
Celular toca de novo e é a esposa.
-Teu irmão ligou. To te vendo na televisão. Pare de frescura e venha imediatamente para casa.
-Sim amor.
Desliga bem na hora que a porta se abre e ele salta para frente.
Abre os braços, mostra aos bombeiros a garrafa térmica e diz:
-Desculpem, só sentei aqui para comer meu lanche. Alguém poderia me levar para casa?

terça-feira, 14 de julho de 2009

Talvez

humberto o sousa

Ela estava feliz.
Corria com um sorriso maroto estampado na face. Ela possuía somente treze anos e corria, com seu sorriso, fugindo para o futuro, tendo em mente a última façanha.
Talvez se não fosse boa aluna não teria recebido aquela medalha, acompanhada de um prêmio em dinheiro.
Talvez se, tivesse paciência, esperado a mãe chegar do trabalho para lhe contar a boa notícia o destino teria lhe sorrido mais que o seu sorriso feliz.
Talvez se, no cruzamento à frente, houvesse seguido reto para onde sua mãe trabalhava até dois meses antes, o destino teria lhe reservado mil medalhas.
Talvez se aqueles dois rapazes houvessem sido tão bons alunos quanto ela, não estariam assaltando a casa lotérica bem na hora que ela estava passando correndo com o seu sorriso feliz.
Talvez se o policial, que estava fazendo uma aposta, fosse mais bem treinado não teria sacado a arma e, correndo, sem nenhum sorriso no rosto, começado a atirar para todos os lados.
A menina que corria caiu, ainda sorrindo, com os olhos abertos. No chão ficou como quem olha o azul do céu. Em seu peito desabrochou uma flor vermelha de sangue, destacando ainda mais a sua medalha.
Os jornais dirão que foi mais uma vitima de “bala perdida”, não mencionarão seu sorriso nem sua medalha.
Em uma história de muitos talvez, somente uma certeza: não existe “balas perdidas”. Existe somente a incompetência e o desprezo pela vida.

domingo, 5 de julho de 2009

Sandálias havaianas e a mulher brasileira - Crônica

Muitas pessoas que me conhecem estranham o fato de que não uso sandálias havaianas, somente imitações.
O fato é de carater pessoal e não financeiro.
O motivo: há alguns anos atrás, a dita sandália, veiculou pelas televisões de todo o pais uma peça publicitária incrível, bem produzida, utilizando uma belíssima música de Benito de Paula, "Mulher brasileira".
No tal comercial, ao som da música, desfilavam, em situações em que, necessariamente, elas estariam trajadas sumarissimamente, belas mulheres, sorridentes, felizes e jovens: na praia, na piscina, passeios de lancha, etc., todas com chinelos havaianas.
Depois de assistir umas três ou quatro vezes notei que no meio das beldades não havia uma negra sequer, nem mesmo uma mulata, e que, em sua maioria, as "mulheres brasileiras" eram loiras.
Com certa surpresa descobri, que para os produtores do comercial, as mulheres negras:
a) não ficam bem em trajes sumários;
b) não eram belas;
c) não sorriam e não eram felizes;
d) não iam a praia, piscina e não passeavam de lancha;
e) não usavam sandálias havaianas; e, para minha perplexidade,
f) as negras brasileiras não eram consideradas, por eles, "mulheres brasileiras".
No principio fiquei horrorizado, depois com raiva e, finalmente, senti desprezo. Desprezo pela fábrica da marca que aprovou a peça publicitária, pelo responsável por sua criação e seus produtores.
Em revolta deixei de usa-las.
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quinta-feira, 2 de julho de 2009

O "Predador da Zona Norte" - conto

humberto o sousa
A polícia estava em polvorosa, mais de doze agressões. Foi até criada uma “Força Tarefa”.
Ele atacava os consultórios odontológicos de mulheres dentistas no final do expediente, então a polícia catalogou todos os ditos consultórios, bem como o horário de fechamento, que passaram a ser monitorados por policiais civis em viaturas descaracterizadas com o apoio tático da policia militar.
Tudo isso porque a vítima número onze era a sobrinha de um Desembargador, que cobrou uma ação enérgica do governador. Claro que a Dra. Sobrinha não foi atacada diretamente, era mais feia que briga de foice no escuro, mas foi amarrada e amordaçada enquanto a sua auxiliar era brutalmente estuprada em sua presença. A Dra. Sobrinha ficou traumatizada, fechou a clinica e os policiais comentavam que foi por não ter sido ela a brutalmente estuprada.
Talvez por instinto, ou espírito de preservação, o estuprador, batizado pela imprensa sensacionalista de ”Predador da Zona Norte”, que quase foi preso no décimo segundo ataque, mudou de tática. Com uma boneca de pano cuidadosamente enrolada em um cobertozinho, dizendo que a sua filhinha estava com quarenta graus de febre, convenceu uma pediatra a reabrir a clinica para atendê-lo, e não deu outra. Alertados pelos funcionários da padaria localizada ao lado da clinica, que ouviram gritos, os policiais invadiram o estabelecimento e pegaram-no em flagrante, só de meias e camiseta, montado em cima da Dra. Japonesinha, totalmente nua, que era espancada violentamente com socos no rosto.
O “Predador” foi levado, depois de ser obrigado a se vestir entre tapas e safanões, para a delegacia do bairro e a vítima entre a vida e a morte, mas ainda nua, levada pelo helicóptero ambulância dos bombeiros diretamente para o Hospital das Clinicas.
...

A noticia da prisão do estuprador “vazou” para a imprensa e quando a viatura chegou com o preso, a delegacia estava cercada por repórteres, cinegrafistas e caminhões das grandes redes de televisão. Levaram quase dez minutos para atravessar o ultimo quarteirão até o distrito.
Os policiais desembarcaram e escoltaram o individuo para o interior e o trancaram em uma sala, dois deles, mais exaltados, pediram e foram atendidos, se trancaram junto e o que se passou lá dentro é um segredo profissional.
Uma hora depois o coitado andando com dificuldade foi levado à presença do Sr. Bacharel (Bel para os íntimos) de Direito Doutor Delegado e o escrivão para ser tomado o depoimento e o Dr. Delegado perguntou-lhe se o sangue que lhe cobria a camiseta era da vitima.
-Não seu dotô, é meu mesmo.
-Você será levado para o IML para fazer o exame de corpo delito, se você falar que os ferimentos que causaram este sangramento foram feito por algum policial você estará se complicando ainda mais.
-Num vô não seu dotô, us policia só me bateram nas minhas partes cum todo cuidado pru modi num machucá. Quem tirô sangue deu foi a dotora.
-Então foi por ela ter te machucado é que você quase matou ela na porrada.
-Não senhor.
-Então foi por quê?
Ele não responde, fica olhando para as mãos com os olhos distantes. O delegado pergunta para o escrivão qual era o nome do infeliz, já que ele tinha qualificado o criminoso.
-Olha Nerso ...
-Pode me chamá de Nercim.
O delegado querendo parecer amigável concorda, ele teria que fazer o cretino confessar tudo, os doze ataques anteriores e o ataque e a agressão atual, não poderia ficar esperando depoimento das vítimas, que envergonhadas, não apareceriam.
-Olha Nercim, você estuprou doze mulh...
-Num foi esse tantim não, foi mais.
-Quantas?
-Sei dize não, só sei qui foi um montão, quase uma por semana desde que vim pra São Paulo.
-E há quanto tempo você mora aqui?
-Quasi um ano.
O escrivão solta um assobio involuntário enquanto o delegado solta um palavrão. Mais uma vez a polícia seria esculhambada por não ter descoberto este maníaco antes. Volta a falar com o tarado à sua frente fingindo uma calma que não sentia, sentia mesmo era vontade de pegar este cretino e pendurá-lo pelos bagos e enviar-lhe todo um cabo de vassoura no rabo.
-Depois, quando eu tomar-lhe oficialmente o depoimento, você falará das outras. Voltando ao assunto da agressão física, quero saber, só por curiosidade, por que você agrediu a pediatra e não as outras. Você usou e abusou delas, mas não agrediu nenhuma fisicamente. Porque somente esta?
-Aconteceu um uns troço isquisitu. Quando eu entrei nela ela começou se mexer e me mordeu, rancó pedaço, aí eu dei um tapa nela e a xota dela começou a ispremé meu pau, foi tão gostoso, aí ela cumeço a ranhá minhas costas cum as unha, eu bati di novu e ela mi ispemeu di novu e começo gritá “bati mais, bati mais ...”. Mi impoguei e comecei a dá uma sova bem dada nela aí us pulicia chegaram e me prendeu.
Curiosidade resolvida, o Dr. Delegado começa a tomar o depoimento, omitindo naturalmente que a Dra. Japonesinha gozava quando apanhava.
...

O Dr. Delegado teve que pedir adiamento para a conclusão do Inquérito por duas vezes, tinha que pegar o depoimento da Pediatra. A coitada, em trinta dias, passou por cinco cirurgias plásticas para reconstituir o maxilar, a mandíbula e o nariz, fora os implantes dentários, havia perdido dois dentes.
Quando finalmente conseguiu autorização dos médicos para tomar-lhe o depoimento a filha-de-uma-puta falou que o sexo fora consensual e a agressão foi acidental.
O que injuriou mais o Dr. Delegado foi saber que ela havia contratado advogado para o tarado e iria depor como testemunha da defesa.
Não adiantou muita coisa o tal advogado caro. Dos trinta e oito casos apurados pelo Dr. Delegado (no início prostitutas de rua, depois empregadas domésticas da periferia que levantavam de madrugada para trabalhar nos bairros nobres e finalmente dentistas), dezessete das vítimas testemunharam e o infeliz foi condenado a uma pena que beirava a eternidade, ou seja, ficaria preso somente trinta anos.
...

Seis meses após o julgamento, jantando com um colega que trabalhava na cidade em que se localizava o presídio que servia de residência permanente para o “Predador”, o Dr. Delegado recebeu uma noticia que o deixou mais puto ainda: a Dra. Japonesinha tinha se mudado para uma cidade vizinha, conseguiu um emprego de Pediatra da prefeitura e havia entrado com um pedido para visitas intimas.

Ilustração: http://www.imotion.com.br/imagens/details.php?image_id=6554