domingo, 13 de setembro de 2009

A receita

humberto o sousa



-Hoje acordei com vontade de ir à Londres de novo.
Ela pergunta: - Você já foi a Londres?
-Não, é que semana passada também tive a mesma vontade.
Ela sorri e ele pensa que ela está rindo da piada dele. Na verdade ela está rindo dele, como uma pessoa de trinta anos podia ser tão imbecil?
Ela já estava namorando ele há um mês, detestava-o desde a primeira vez que ele lhe dirigiu a palavra. Ela havia prometido ao avô que arranjaria um namorado e o levaria para a festa da igreja e, como não negava nada ao avô, teria que agüentar este babaca, que ela escolheu a dedo, até lá.
Ela tinha vinte e dois anos, um metro e sessenta, bonita, cabelos negros e olhos verdes. Não possuía um corpo perfeito, ela era daquelas mulheres magras que tinha os quadris largos e as coxas finas, ficando um vão enorme entre as pernas. Como dificilmente usava calça a maioria das pessoas achava que ela era evangélica.
Ele tinha quase dois metros, cento e vinte quilos e até para ir à padaria da esquina ia de carro. Ele naturalmente se sentia poderoso diante dela, protetor.
- Uma formiga chegou para a outra e disse: “Meu nome é fumiga e o teu? ’
E a outra respondeu - ‘Ota”.
Ela sabia onde aquilo ia dar outra piada sem graça, mesmo assim perguntou - Ota o quê?
- Ota fumiga. E ele dá uma imensa gargalhada.
Ela até que poderia se apaixonar por ele. Se a situação fosse outra, casariam, teriam filhos e ela o protegeria das durezas e injustiças da vida, mas ela estava impedida pelas condições do avô, então o odiaria e fim de papo.
- Sabe, no fim de semana tem a festa da igreja matriz, lá em minha cidade, terei que ir e gostaria que você fosse comigo.
- Mina, com você, e por você, vou até o inferno.
- Então agente sai na sexta feira à noite. Só não diga para ninguém onde você está indo, algum amigo teu poderia querer ir. Quero um fim de semana somente para nós dois, afinal vou te apresentar minha família.
Enfim sexta feira, ele aguardava ansiosamente este dia. Tinha a esperança de que iria finalmente come-la.
Ela o está aguardando em frente ao prédio dela, de bagagem somente uma bolsa. Ele pergunta se ela não tem nenhuma mala e ela responde que tem roupas de sobra no sítio do avô.
Ela diz que iriam no carro dele, mas seria melhor ela ir dirigindo. Ela sempre confundia esquerda com direita na hora de explicar o caminho para alguém. Ele, querendo deixá-la feliz, concorda.
Ela dirigiu a noite toda e, sempre que possível, por estradas secundárias. Ele perguntou-lhe o porquê disto e ela respondeu que não gostava de pagar pedágio. Na verdade ela estava era fugindo das câmeras de segurança, que certamente filmariam o carro e, na investigação policial que aconteceria no futuro, esta imagem poderia aparecer.
Chegaram ao sítio do avô logo após o nascer do sol. O avô já estava de pé e os esperava na varanda da enorme casa, abraça a neta e cumprimenta o namorado, dirigindo à neta um olhar de aprovação.
- Fico feliz que tenha vindo com minha neta, ele diz. Há mais de cem anos nossa família faz quitutes para a festa da igreja da cidade. Minha filha sempre me ajudou no preparo dos pasteis que serão vendidos na quermesse, mas como morreu em um acidente no ano passado, é minha neta que terá que me ajudar. Se você não tivesse vindo com ela, veja a carinha de felicidade dela, ela não estaria tão feliz e os pastéis não ficariam gostosos e o padre brigaria comigo.
E o avô continua falando sem parar, ele mal tem tempo para pensar.
- ... Sei que estão cansados, mas insisto que você venha ver os animais que crio. São animais silvestres, claro que tenho autorização do IBAMA, vendo a carne para restaurantes de São Paulo e do Rio. Também exporto.
E vai conduzindo os dois para os cercados onde estão os javalis, pacas e antas.
Depois insiste para que ele veja as instalações onde as carnes eram processadas.
A construção, com seus azulejos e pisos brancos, bancadas e pias de aço, tem uma aparência de higiene e limpeza.
Ela caminha logo atrás deles e em determinado momento o chama, obrigando-o a se voltar para ela. Ela segura seus braços e o olha com um olhar triste.
Ele não vê que o velho, atrás dele, pega uma pesada barra de ferro.
A última imagem que ele viu foi o rosto dela sendo coberto com sangue e fragmentos de uma substância esbranquiçada que ele sabia ser o cérebro dele. Como já estava morto ele não viu que ela limpava o rosto com as pontas dos dedos e os levava à boca e em seus olhos não havia mais tristeza e sim uma voracidade animalesca.

Naquela noite ela e o avô venderam mais de quinhentos pasteis de carne, que foram muito elogiados e, como sempre, todos perguntavam que carne que eles usavam e eles respondiam que era uma mistura de carnes de caça, cuja receita era segredo de família.

4 comentários:

  1. Uau!...lí tudinho de um só fôlego!.
    Excelente!...adoro contos fortes com finais surpreendente.
    valeu!
    abraço
    terezab

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  2. Humberto, eu li tudinho tbém, mas nem por alto imaginei um final desses!

    Parabéns pela imaginação.

    Fui,

    Lena

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  3. Este conto é digno de sexta-feria 13.....

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