quarta-feira, 28 de julho de 2010

Retorno

humberto o sousa 

 

... teoricamente falando, claro. Eu meditei bastante e cheguei à conclusão que a vida é uma grande merda. Veja você que coisa esquisita, quando era garoto conheci uma menina horrível, gorda, cheia de bereba no rosto, mau hálito e dentes todos tortos. Ela falava para todo mundo que era apaixonada por mim e, lógico, eu morria de vergonha, mas nunca a destratei. Quando havia uma festinha qualquer eu sempre dançava uma ou duas músicas com ela para que se sentisse feliz. Uma semana antes do “grande evento” – você já deve estar cansada de ouvir esta história, mas vou continuar contando mesmo assim – fui ao meu banco renegociar um empréstimo e quem que era a nova gerente? Não precisa responder. Era ela. Como era da minha idade deveria ter uns quarenta e cinco anos, mas não aparentava mais de trinta. Eu não a reconheci de imediato, na verdade ela que me reconheceu e disse quem era. Estava linda, com o corpo perfeito, solteira e desimpedida, almoçamos juntos naquele dia e nos encontramos mais duas vezes antes de irmos para o motel, justamente no dia do “grande evento”.

- Por outro lado, casei-me com a mulher mais linda e meiga que já havia visto na vida, e quinze anos depois estava gorda, relaxada e rabugenta. Não diga que eu não a deixava trabalhar e fiz três filhos nela, não é esta a questão, os motivos não importam o que importa são as voltas que o mundo dá, ou dava.

- No dia do “grande evento”, depois de uma tarde maravilhosa passada no motel, voltei para casa e começou o inferno. Minha esposa queria saber aonde eu tinha tomado banho, o cheiro de sabonete e meus cabelos ainda úmidos não me deixariam mentir, então peguei o carro e saí. Entrei no primeiro bar decente e bebi, bebi, bebi. Bebi tanto que nem me lembro como cheguei aqui. Quando acordei e vi estas paredes brancas e esta luz intensa, mas que não fere os olhos, pensei que estava morto. Depois você entrou e começou a aplicar-me injeções, pensei que estava em um hospital. Só comecei a desconfiar de que não era uma coisa nem outra quando te reconheci. Você é uma mistura das duas: uma quando jovem e a outra já madura. Você é a mistura dos dois grandes amores da minha vida que somente poderia ser forjada pelo meu espírito e...

Neste momento ouviu claramente em sua mente um aviso curto e seco, mas de uma voz amiga e apaixonada: “Chegamos”.

Há certo tempo, ele e sua nave, foram atacados por três espaçonaves desconhecidas quando estava tentando fazer contato. Dispararam uma salva de mísseis atômicos e, se não fossem as paredes de mais de quinhentos metros a sua nave seria fatalmente destruída, fugiram. Os danos foram imensos e ele não poderia seguir os agressores, mas enviou uma sonda para acompanhá-los sem ser notada enquanto a sua nave se auto reparava. Duas semanas atrás finalmente recebeu uma mensagem comunicando o destino das tais neves, uma estrela a uns dez anos luz de distância e seguiu para lá e agora chegaram.

A sonda começou a enviar-lhe imagens. No princípio ele não acreditou, mas aqueles anéis eram inconfundíveis e depois a Grande Mancha Vermelha ainda estava no equador do maior planeta do sistema.

Uma lágrima lhe escorre pelo rosto. Após oito mil anos sem ver um rosto humano de verdade ele teria que destruir toda a humanidade. A missão daquela nave, e dele como seu único ocupante, era destruir as raças agressoras que porventura saíssem de seus planetas.

humberto.sousa@etec.sp.gov.br

terça-feira, 1 de junho de 2010

Circulo de sombras

humberto o sousa

Houve um tempo, antes do tempo, em que ele não existia, mas a partir da criação do tempo, ele tinha consciência de todas as suas vidas. Estas recordações não surgiram simplesmente. Foi um processo doloroso e difícil que levou muitos anos de sua confusa vida.

Quando ele tinha nove anos incompletos começou a ver sombras tênues, mas somente com os cantos dos olhos, que circulavam ao seu redor, rente ao chão, e que pareciam que se afastavam medrosas ao seu avanço, procurando sempre manterem uma distância fixa entre elas e seus pés.

A partir do momento que ele começou a ver-las, as tais sombras, houve uma mudança significativa em sua vida, os garotos que o importunavam e o agrediam por causa de sua gagueira, passaram e evitá-lo, muitos, até, desviavam a vista quando ele os olhava querendo saber o que estava se passando, afinal, apesar de tudo, eles eram as únicas crianças que falavam com ele ou o tocavam, mesmo sendo somente para xingá-lo e socá-lo.

Com o passar do tempo, à medida que se acostumava com a solidão, também as sombras foram tornando-se mais nítidas, ele quase as podia ver olhando diretamente para elas, ou para ela, pois, se antes ele via diversas siluetas separas, agora ela tomou a forma de um sólido anel, ou antes, uma serpente que engolia o próprio rabo, e não passava mais a sensação de fuga medrosa ao seu avanço, mas uma barreira de proteção entre ele e o mundo exterior.

Sempre ouvirá falar de anjos da guarda, e ele era uma das poucas pessoas do mundo que conseguia ver o seu, o que mais poderia ser se não um anjo que, desde a sua chegada, ninguém o agredia mais, nem mesmo o pai, que passará a ter uma expressão medrosa à sua presença. Ele morria de rir internamente quando ouvia as pessoas ignorantes dizerem que os anjos eram seres de luz, na verdade era o contrário, eram seres de trevas e sombras que não voavam com suas asas brancas, mas rastejavam aos pés dos mortais.

Ao completar vinte anos, o pai em um acidente besta, daqueles que só acontece uma vez a cada milhão de anos, engasgou ao tomar um copo de vinho e, ao tossir descontroladamente, estourou parte do intestino, morrendo três dias depois de infecção generalizada, fedendo à merda e carne podre. Assumiu a pequena mercearia da família, e descobriu seu verdadeiro dom: ganhar dinheiro. Cinco anos depois era o proprietário de uma rede de doze supermercados, que lhe rendiam dinheiro suficiente para saciar seus vícios sexuais, fosse com homens ou mulheres, nunca ambos, que lhe foram surgindo ao longo do processo de ficar rico.

Somente havia uma pessoa próxima a ele, Clara, a governanta de sua residência. Nela ele via uma tênue linha negra circundando-a, que se encolhia toda quando ele se aproximava. Ela o ajudava a encontrar parceiros, depois lhes providenciava socorro médico e distribuía gratificações generosas para que se calassem. Quando não havia ninguém, ela mesma se submetia, apesar de ele não gostar muito, não enxergava terror nos olhos dela, somente prazer.

Certa noite ele sonhou que uma figura se destacava de sua sombra companheira, vestia-se como legionário romano, feições indistintas. A figura avançou em sua direção e penetrou em seu corpo e ele deixou de ser ele mesmo e passou a ser o legionário em pleno campo de batalha, ouvindo os gritos de seu general, Varus, que a cavalo, desfilava entre os soldados, incitando-os a tomar a aldeia alemã fortificada. Ele sentiu a alegria da vitória, gozou com a ordem para o saque, sentiu prazer ao violentar uma garotinha de uns oito anos que depois matou a dentadas.

Ao acordar ele tomou consciência de que aquela vida, a do legionário, foi a dele e o desejo de reviver aqueles atos foi maior do que todos os desejos que já sentirá em toda a vida.

No caminho de volta do trabalho, em um sinal fechado, uma menina bate no vidro de sua janela perguntando se ele queria comprar balas, ele sente um formigamento nos testículos. Ele tinha que possuir aquela menina e tudo o que aconteceu depois foi como se estivesse sendo dirigido por uma entidade maior e ele estivesse em meio a um sonho. Pergunta quem a está acompanhando e ela responde que a mãe e o irmão mais velho e ele pede que ela fosse chamar a mãe enquanto ele estaciona e a mãe vem e ele diz para a mãe que o filhinho dele que está fazendo aniversário e que está muito doente e ele iria comprar um bolo para ele e talvez fosse o último bolo de sua curta vida e se ela com os filhos não gostariam de ir cantar parabéns para o filhinho querido dele e ele depois os levaria para casa e lhes pagaria cem reais o que ele não podia deixar de fazer era dar esta última alegria para o filho e eles mãe e filhos entram no carro e ele se dirige para o seu sítio que era isolado e o caseiro morava distante e não ouviria os gritos liga para a Clara pelo celular e fala que está indo para o sítio “comemorar o aniversário do filho” e era para ela ir para lá imediatamente quando eles chagam no sítio ele abre a porta e pede para que a mãe entre primeiro com os filhos e na hora que ela lhe vira as costas ele lhe dá um violento soco nos rins e ela se dobra toda e ele lhe dá uma joelhada no rosto e os filhos ficam estáticos sem entender o que está acontecendo e ele pega as crianças pelos braços e os amarra na sala volta para a mãe e a arrasta para um dos quartos e a amarra na cama volta para as crianças e pega a menina e a esbofeteia e a arrasta para outro quarto onde também a amarra e volta para sala para cuidar do garoto e quando Clara chega ele está saciado, mas o garoto está morto e Clara não demonstra surpresa mas sim excitação e se dirige para o quarto onde está a garota e ele lhe grita que a garota e dele e lhe aponta o outro quarto e então ele dorme e sonha agora que é um frade espanhol do início da exploração das Américas e que em nome de nosso senhor Jesus Cristo que nome abominável pratica as maiores torturas contra os nativos da América Central e ele acorda tendo novos desejos sem saber quanto tempo havia dormido e o garoto morto já não estava mais lá e ele se levanta e vai procurar Clara e a encontra totalmente nua de quatro com uma das mãos ela manipula um enorme cassetete enfiado no próprio anus que sangra e a outra mão manipula um alicate nos dedos da mulher e Clara está com a cabeça enterrada entre as pernas da mulher e ele vê que a sombra que circunda Clara não é tênue e fina mas tão grossa e espessa quanto a sua e não se contrai com a sua aproximação mas avança em direção dele e se enrola em seu próprio circulo sombrio e ambas as sombras enrodilhadas em uma só lhe abrem passagem para que ele alcance a cama e Clara tira o rosto de entre as pernas da mulher que está desmaiada e sua boca esta ensangüentada ela havia acabado de comer a vulva da mulher e lhe sorri um sorriso que todos considerariam de uma loucura insana mas para ele foi o mais doce dos sorrisos e ele se apaixona sabendo que passaria o resto da eternidade ao lado dela com seus anjos da guarda enroscados lhes servindo de escudo e ele lhe beija a boca ensangüentada e ela lhe mostra um prato de carne cozida ao lado da cama e ela lhe conta que cortou um pedaço da criança morta cozinhou e deu para a mulher comer e depois lhe contou que era carne do próprio filho e ela não agüentou e desmaiou e ele lhe fala para esperarem ela acordar para poderem juntos se divertirem com ela e depois irem cuidar da menina e então ele houve o barulho de porta sendo arrombada pessoas correndo e então vê policiais vindo na direção deles e ...

O que ele não sabia era que o caseiro havia ido à cidade no dia anterior, tomou umas a mais e acabou dormindo por lá mesmo e, ao voltar, virá os carros do patrão e de Dna. Clara em frente à entrada da casa e resolveu dar uma olhada pela janela da cozinha para ver se estava tudo bem, se eles precisavam de alguma coisa, e o que viu vez com que saísse correndo, vomitando, de volta para a cidade para avisar a polícia.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Carta de despedida

Lapiseira

John, foi bom enquanto durou todo o nosso amor!

Recordo a primeira vez em que você me pegou, abriu meu buraquinho e xuxou todo o teu grafite, preenchendo todo o meu ser, e me pressionou inexperientemente com toda a força em teu caderno. Lembro, ainda, de como você foi o primeiro a desnudar o meu fundinho para apagar tudo o que errou.

Infelizmente, para você, conheci alguém mais interessante, que me pega mais de jeito.

Vou-me embora para a casa desta pessoa. Ela precisa de alguém como eu, dedicada e fiel, para ajudá-la à se formar em Psicologia.

Finalmente serei reconhecida e bem utilizada.

Beijos

Lapiseira do John

(Ou melhor: a ex-Lapiseira do John)

(bilhetinho, de autoria anônima,  deixado no caderno de um amigo meu, que gentilmente repassou-me para que eu o editasse e publicasse aqui. humberto o sousa).

 

falo o que penso: Carta de despedida

quarta-feira, 31 de março de 2010

O Nestor morreu!


humberto o sousa

- Mas quando? Ainda ontem à tarde tomamos uma cerveja juntos lá no bar do Bigode.
- Foi lá mesmo que ele morreu, deram dois tiros nele, um na barriga e outro na cabeça.

Qual não foi minha surpresa quando, há uns oito anos, ao atender o toque da campainha, deparei-me com um sujeito de cabelos e barba longos grisalhos, pensei imediatamente em Papai Noel. Achei que já o conhecia de outro lugar:
- Por favor, onde posso encontrar ... Dadá!?
Ao ouvir o velho apelido não tive mais dívidas, era o Alípio. Havíamos servido o Exército, e tomamos muitos porres, juntos há mais de vinte anos.
Abraçamos-nos e a velha amizade logo recomeçou do ponto em que havia parado.
Ele contou que era Delegado de Policia e estava sendo transferido para nossa cidade e procurava uma casa localizada em um lugar tranqüilo e indicaram, que coincidência, a terceira casa além da minha e estava tentando falar com o proprietário. Chamou a esposa, que estava dentro do carro, estacionado em frente à pretendida, entramos, famílias apresentadas, afinidades descobertas.
Liguei para o proprietário da tal casa, e ali mesmo fecharam negócio, quinze dias depois mudaram de mala e cuia.

De um total de trinta e duas casas, somente sete eram ocupadas permanentemente por seus proprietários, alguns dos outros passavam o fim de semana e o restante somente vinham uma ou duas vezes por ano.
Dos sete dois eram aposentados e ficavam à parte dos outros cinco, cuidando de seus jardins e pescando nos finais de tarde, distribuindo peixes frescos para a vizinhança toda. Já Cacau, Nestor, Alípio (Dr. Delegado), Jorge e eu trabalhávamos na pequena cidade próxima e ao final do dia, sempre nos encontrávamos no último boteco da cidade, que ficava bem no fim do asfalto, o famoso Bar do Bigode, na realidade um verdadeiro copo sujo, daqueles que os homens adoram, com sua mesa de bilhar e cerveja sempre no ponto certo.
Deste companheirismo de boteco surgiu uma sólida amizade entre nossas famílias, com churrascos em quase todos os fins de semana ou a reunião para assistir algum jogo de futebol, os homens na sala, as mulheres na cozinha e as crianças só Deus sabe onde.
A coisa toda começou a desandar quando surgiu a suspeita de que o Nestor estava comendo a esposa do Cacau. Ninguém comentava nada, mas nossas reuniões passaram a ser permeadas por silêncios constrangidos.

Naquele sábado cedo estava eu tranquilamente podando a trepadeira do muro da frente quando vejo o Dr. Delegado sair da casa dele, só de sunga, garrafa térmica em uma das mãos. Entrou em minha casa, sem pedir licença, voltou com uma cadeira e dois copos, sentou-se e colocando um dos copos entre as pernas, encheu o outro com o conteúdo da garrafa, era caipirinha de vodca, e me passou.
Com o copo na mão acomodei-me no chão ao seu lado, e, antes de tomar o primeiro gole, ele disparou:
- O Nestor morreu!
- Mas quando? Ainda ontem à tarde tomamos uma cerveja juntos lá no bar do Bigode.
- Foi lá mesmo que ele morreu, deram dois tiros nele, um na barriga e outro na cabeça.
- Quem?

Na quinta feira anterior, três horas da tarde, o Nestor me liga dizendo que estava indo para a cidade (quando neste horário ele deveria estar na cidade trabalhando, será que ele não estaria visitando a mulher do Cacau?), e quebrou o amortecedor ao passar por um dos vários buracos existentes na estrada, eu não poderia ir socorrê-lo?
Claro que podia. Peguei meu carro e fui buscá-lo e deixei-o no mecânico que iria voltar com ele para ver se foi realmente o amortecedor e voltei para o serviço. Só voltei a encontrá-lo na sexta feira a noite lá no Bigode.
Tomamos uma cerveja juntos, e ele perguntou se eu tinha visto o carro dele, falei que não, e ele foi mostrar-me.
Alguém tinha, aos de socos e pontapés, feito mossas enormes nas laterais e no capô do veículo. Perguntei se ele sabia quem foi, disse que não mas um dia iria descobrir. Perguntei se iria para a casa, disse que não, tinha que ir a uma reunião na OAB da cidade e somente estaria livre lá pelas dez. Foi a ultima vez que eu o tinha visto.
O Alípio ouviu atentamente meu relato, em seu rosto não havia um pingo de amizade, somente a frieza do profissional querendo a verdade.

-Conte-me o que aconteceu, pedi.
- Bem, lá pela meia noite o Bigode me ligou. Era para ir urgente. Mataram o Nestor. Fui imediatamente. Chegando lá encontrei a vitima imóvel caída em meio à uma poça de sangue. Verifiquei os sinais vitais e não havia nenhum, constatando que estava morto. Interroguei o Sr. Bigode e ele fez o seguinte relato: a vitima, Sr. Nestor adentrou em seu estabelecimento por volta de 22:30 (vinte e duas horas e trinta minutos), pediu uma cerveja e foi prontamente atendido. A testemunha afirma que ficaram conversando até as 23:00 (vinte e três horas), quando chegou o indivíduo conhecido pela denominação de Cacau, sentou-se com a vítima e passaram a animadamente conversar sobre futebol, ambos, pelo que todos sabiam, torciam pelo mesmo time, tomando várias garrafas de cerveja. Após certo tempo o Sr. Nestor começou a falar de seu veículo, afirmando que “Quando descobrisse o corno filho da puta que havia feito aquilo” iria quebrar a cara dele. Ao ouvir isto o Sr. Cacau levantou-se foi até o seu próprio veículo e voltou portando um revolver, aparentemente calibre 22, e disparou o primeiro tiro no abdômen da vitima e gritando que “Pode me chamar de corno, eu sou mesmo, mas não admito que me chame de filho da puta” e efetuou o segundo disparo na cabeça do falecido. Pelo relato da testemunha, o suspeito pediu a conta e, após paga-la, evadiu

sexta-feira, 5 de março de 2010

Futebol é para macho


humberto o sousa

Um, João Paulo, conhecido como Paulinho, tinha 1,74 m e 22 anos. Veio do nordeste para jogar no interior de São Paulo, em uma cidade marcada pela rivalidade polarizada entre os torcedores de dois times.
O outro, João Carlos, conhecido como Carlão, tinha 1,80 m e 22 anos. Veio do sul para jogar no interior de São Paulo, em uma cidade marcada pela rivalidade polarizada entre os torcedores de dois times.
Um, o Paulinho, atacante rápido e técnico, marcará quatro gols nos primeiros três jogos do campeonato paulista. Outro, o Carlão, era um volante com uma marcação leal, mas dura, roubava a bola e fazia lançamentos certeiros de mais de quarenta metros, marcou um gol e passou a bola para que dois outros fossem marcados do total de seis do seu time nos três primeiros jogos do campeonato paulista.
A próxima rodada seria decisiva para os dois times, haveria confronto direto. A imprensa da região já anunciava o clássico do século. A polícia passou a semana toda atendendo ocorrências envolvendo os torcedores de ambos os times, qualquer discussão de quem seria o melhor, Paulinho ou Carlão, descambava em quebra-quebra.

O “derby” seria no domingo e já na quinta os presidentes dos dois times tiveram que cancelar as respectivas agendas para convocarem juntos às emissoras de rádio e televisão locais uma entrevista coletiva para pregar a paz, na verdade eles somente conseguiram elevar mais a temperatura e a intransigência das torcidas. A entrevista estava ocorrendo relativamente bem até que o repórter do maior canal de televisão da região fez uma pergunta capciosa e, bem na hora do almoço, em frente às televisões, a maioria dos moradores da cidade foram testemunhas de uma cena deprimente: “se as ofensas que os dois presidentes vinham trocando há meses não estariam influenciando os ânimos dos torcedores dos dois times”. Os presidentes sem acreditar no teor da pergunta, afinal eles estavam ali para apaziguar os torcedores e vinha este repórter de merda colocar lenha na fogueira, olharam fixamente para o repórter, depois se entreolharam e, esta troca de olhar fez com que velhas feridas fossem abertas, o mais extrovertido dos dois pegou o microfone e disparou: ”Escuta aqui seu porra, para tentar a paz fui obrigado a aturar esta bicha louca a manhã toda e você vem fazer esta pergunta do cara...”. Antes que ele concluísse a frase o outro lhe atirou uma garrafa de água no rosto, se levantou e partiu para cima distribuindo soco e pontapés. O repórter tentou apartar, mas depois de ter tomado uns tapas “acidentais” acabou desistindo.
Nos telejornais noturnos a cena foi retransmitida para todo o território nacional, com entrevistas de ambos os lados falando em processos por ofensa moral, injúria e danos físicos.

Enfim domingo, dia do grande jogo. As Polícias da cidade solicitaram reforços nas cidades vizinhas e passaram a patrulhar ostensivamente os pontos críticos e os principais caminhos para o estádio. Ocorreram poucos incidentes, havia a suspeita de que as torcidas esperariam para partirem uma para cima da outra ao final da partida e o comandante da Polícia Militar rezava a todos os Deuses que realmente as agressões ocorressem “após” a partida e não “durante” a partida, pois, se isso acontecesse seria uma tragédia maior do que a primeira opção porque ocorreria em ambiente fechado, sem lugar para fugir em caso de pânico.
Começa a partida e todos notaram que a função do Carlão em campo seria ser a sombra do Paulinho e lá pelos vinte minutos do primeiro tempo nenhum dos dois ainda não haviam realizado nada: Paulinho não conseguia ficar desmarcado para receber a bola e o Carlão não armava nada e nem era o paredão na frente dos zagueiros de seu time. O jogo estava burocrático e tedioso. Aos trinta há um escanteio para o time do Carlão e ele vai para a área adversária para tentar o cabeceio, Paulinho vai atrás para marcá-lo, durante o empurra-empurra antes da cobrança o Carlão se vira e dá um murro no rosto do Paulinho que cai desacordado, soube-se depois que perdeu dois dentes e teve fratura do maxilar e suspeita de uma concussão craniana, foi internado. Carlão é expulso na hora. Começa a briga, tanto em campo, quanto nas arquibancadas. Parte dos torcedores invade o gramado, a policia já não consegue dominar a situação e começa a lançar gás lacrimogêneo, o trio de arbitragem, mais o quarto juiz, abandona o campo, diretores de ambos os times trocam sopapos. O representante da federação e o comandante da tropa da Policia Militar se reúnem com os presidentes dos times e chegam à conclusão de que é melhor suspender o jogo para uma nova data em campo neutro. A situação somente foi controlada após três horas com o saldo de um morto e uns oitenta gravemente feridos.
Inicialmente Carlão, no domingo à noite, é tido como o grande responsável pela tragédia. As grandes redes o caçam para uma “exclusiva”, mas ninguém sabe onde encontrá-lo. Quando os médicos autorizaram, Paulinho dá sua entrevista dizendo que não guardava rancor, que ele e o Carlão já se conheciam desde os 18 anos, quando participaram de uma Copa São Paulo de Futebol Junior e já haviam disputado um Sul-Americano pela seleção brasileira sub-vinte, quando dividiram o mesmo quarto na concentração e nos hotéis, não se tornaram amigos, mas sempre tiveram certas afinidades, até passaram a jantar juntos de vez em quando desde que passaram a jogar nos atuais times, etc e tal.
Na quarta surgiu um vídeo na internet de uns vinte segundos em que mostrava o real motivo da agressão: Paulinho, não uma, nem duas, mais várias vezes, enfiava o dedo médio no rabo do Carlão que tentava defender-se dando tapas na mão do Paulinho, até que em um momento de extrema irritação deu o tal soco.
Na quinta pela manhã os jornais estampavam as fotos, em seqüência, tiradas do vídeo e, enfim, os telejornais na hora do almoço absolveram o Carlão. Se pegaria ou não uma pesada suspensão não tinha importância, o importante era que ele provou que era macho e não aceitava desaforos.

No apartamento do Paulinho, sentados no sofá, assistindo televisão bem juntinhos, Carlão, sim era lá que ele fora se esconder, implorava que Paulinho o perdoasse pelos dois dentes e lhe jurava amor eterno.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Karma


humberto o sousa

Ele acordou com batidas na porta da cozinha, o que o deixou assustado, pois, seria impossível alguém vindo da rua ter acesso a esta porta, então, consequentemente, era alguém que havia pulado o muro dos fundos. A mãe estava no trabalho e ele, havia acabado de dar baixa do Exercito e como era final de novembro decidiu que somente voltaria ao seu emprego em janeiro, estava sozinho em casa. Procurando não fazer muito barulho, abriu a gaveta do gabinete da pia e pegou uma faca, caminhou lentamente até a porta e a abriu, tomando o cuidado de colocá-la entre ele e o visitante, a faca, firmemente presa em sua mão esquerda, preparada para o que desse e viesse.
Era a Luzia, filha da vizinha do lado esquerdo, um ano mais nova do que ele e meio metida a besta, mas um tezãozinho.
O que aconteceu em seguida foi tão rápido que ele, muito tempo depois, ainda tentava compreender a real seqüência dos fatos.
Ela entrou rapidamente e fechou a porta atrás de si, atirou-se contra ele e beijou-lhe ardentemente os lábios, depois, pegando-lhe a mão direita, começou a arrastá-lo para a sala.
No corredor ele vê a sua carteira e, lembrando as palavras de seu Sargento: ”Nunca envie este pau imundo em lugar nenhum sem camisinha”, se solta de sua condutora para pegar um preservativo e só então nota que ainda segurava a faca.
Na sala, entre beijos, tiram a roupa. Ele deita-se no sofá e ela deita por cima, começam a se esfregarem e ela vai conduzindo, com o corpo, o pênis dele para a entrada de sua vagina e o que ele sentiu na ponta de seu pênis fez com que recuasse finalmente lúcido desde a entrada tempestuosa dela.
- Que houve? – ela pergunta e ele percebe que estas foram as primeiras palavras dela desde que chegou.
- Você ainda é virgem;
- E daí? Não quero mais ser.
- E que acho que não tenho o direito de tirar a tua virgindade. Somos vizinhos há uns dez anos e mal trocamos uma dúzia de palavras neste tempo.
Ela foi surpreendida pelo que ele falou e ele logo se arrepende de ter dito e tenta consertar:
- E você sempre pareceu nunca prestar atenção em mim. Em uma festa, há uns anos, acho que foi no aniversário da Marcinha, te chamei pra dançar e você perguntou se eu não me enxergava.
- É que eu sempre gostei de você e daquela vez você me pegou de surpresa e respondi sem pensar.
- Mesmo assim não vou tirar tua virgindade.
- Tudo bem, quero você e não importa como.
Durante a próxima hora eles fizeram de tudo um pouco até ficarem saciados e ela permaneceu virgem.
- Você me ajuda a pular o muro de volta?

No dia seguinte ela voltou a visitá-lo, novamente saltando o muro e novamente voltando para casa virgem, porem satisfeita.
Ela voltou somente seis meses depois.

Era maio, a empresa em que trabalhava ganhou contrato para uma obra no Kuwait, o salário era o triplo do que ganhava no Brasil e em dólares ainda por cima. Inscreveu-se, fez os testes psicológicos e os exames físicos, foi aceito, iria embarcar dali à quinze dias, sua mãe chorava pelos cantos, de saudade antecipada, mas conformada, pois o contrato assinado era somente de dois anos.
Acordou naquela manhã com a já reconhecível batida na porta da cozinha, era Luzia, que cabisbaixa, timidamente entrou cozinha adentro.
- Soube que você vai trabalhar fora do Brasil, é verdade?
- É, Surgiu a oportunidade de fazer um pé de meia e eu estou aproveitando.
- E a faculdade?
- Tranquei matricula, volto daqui a dois anos e retomo.
- Não sou mais virgem, você não quer se despedir de mim?
Claro que ele queria.
Desta vez foram para o seu quarto, dividindo a estreita cama de solteiro.
Ele não sabia o que era Nirvana, mas provavelmente seria algo semelhante (depois, os dois conversando, ele descobriu que ela havia experimentado algo parecido), pouco antes do clímax ele sentiu como se sua alma se desprendesse do corpo e do alto, junto ao teto, observava os dois se amando. Foi uma experiência que jamais se repetiu com mulher alguma.

Já estava no Kuwait há treze meses, quando recebeu carta da mãe avisando que Luzia havia casado. Sentiu uma tristeza profunda, um sentimento de perda, somente afogado com trabalho em excesso.
Ao fim de seu contrato, renovou por mais dois anos, não queria retornar ao Brasil, apesar da saudade que sentia da mãe.
A obra do Kuwait acabou após três meses e ele foi realocado para o Iraque, com uma pequena promoção. Foi lá que recebeu a notícia do falecimento da mãe, em telex remetido pelo escritório central da empresa que trabalhava.
A chefia da obra comunicou-lhe que estavam tomando providências para o enterro da mãe e para o seu retorno ao Brasil, tinha três férias acumuladas. Ele agradeceu, mas recusou as férias, se fosse possível ele gostaria de continuar trabalhado.
Recebia somente trinta por cento de seu salário, o restante era administrado pela mãe, que depositava em uma poupança, preencheu os formulários passando este encargo para a empresa, deveriam cuidar da manutenção e pagar as contas da casa depositando o restante, devendo a chave ser entregue para dona Maria Lúcia, mãe da Luzia.
Dona Maria Lúcia passou a escrever-lhe regularmente atualizando notícias da filha, será que ela sabia de alguma coisa sobre os dois?
Luzia havia tido um filho “que por coincidência chama João Carlos como você”, que o marido de Luzia havia entrado em depressão e havia suicidado “pedi para a tua mãe não te contar”, que Luzia estava noiva e iria casar-se novamente e por aí vai. Se a notícia do suicídio do primeiro marido o havia deixado com alguma esperança o novo casamento enterrou-a.

Os dois anos iniciais no Iraque transformaram em seis e meio. Finalmente ele iria voltar ao Brasil, pelo menos por seis meses, férias acumuladas. Depois ele veria se continuaria no Brasil, voltaria para o Iraque ou iria para uma de duas obras novas: Congo ou Bolívia.
Dona Maria Lúcia, ao receber a notícia de sua volta, mandou limpar e arejar a casa, abasteceu a despensa, as despesas foram todas ressarcidas pela empresa, mediante a apresentação dos recibos.
Ao entrar em casa, depois de tanto tempo, bateu-lhe uma profunda melancolia: recordações da infância, arrependimento por não vir ao enterro da mãe e muita saudade dela e, principalmente, a insatisfação por seu amor a Luzia.
Dona Maria Lúcia vem lhe trazer um pequeno lanche, estavam no meio da tarde, e enquanto ele come, ela, sentada a sua frente, conta que Luzia estava morando no interior e, quando soube de sua vinda, avisou que viria passar uma semana com ela, chegaria na manhã seguinte.
A ansiedade de tornar a vê-la fez com que tivesse, apesar do cansaço, uma noite péssima. Sua mente vagava em fantasias febris, que variava entre ela ainda ser a mesma garota de seis anos atrás, ainda virgem, até estar em uma obesidade relaxada, dente podre e suor fétido.
Pela manhã, já de plantão junto à porta da cozinha, abriu-a a primeira batida.
Luzia estava somente um pouquinho mais gorda, uma pequena cicatriz em seu supercílio esquerdo e o nariz, que ele descobriria depois que havia sido quebrado pelo último marido, levemente torto realçavam a beleza de seu rosto.
Não trocaram uma palavra sequer. Na sede da paixão transformaram a mesa da cozinha em leito de núpcias. Novamente ele alcançou o Nirvana.

- Quer se casar comigo?
- Te amo de mais para me casar com você.
- Não entendi o paradoxo.
- Minha mãe diz que tenho um carma ruim para homem. Aquele meu namorado, o que me tirou a virgindade, ficou tetraplégico, quebrou o pescoço ao pular na piscina. Meu primeiro marido suicidou. Tive um noivo que morreu em um acidente de carro. Meu último marido, era um amor de pessoa, de repente passou a me espancar todos os dias e está preso por ter matado um rapaz que, pensando que eu estava desacompanhada, me chamou de gostosa, estou me divorciando.
- Tudo isto é coincidência.
- Pelo sim e pelo não, nunca assumirei compromisso com você. Depois do divorcio virei morar aqui com a minha mãe e continuarei pulando o muro.
- Mandarei construir uma escada. O meu karma é esperar você pular o muro.