sexta-feira, 5 de março de 2010

Futebol é para macho


humberto o sousa

Um, João Paulo, conhecido como Paulinho, tinha 1,74 m e 22 anos. Veio do nordeste para jogar no interior de São Paulo, em uma cidade marcada pela rivalidade polarizada entre os torcedores de dois times.
O outro, João Carlos, conhecido como Carlão, tinha 1,80 m e 22 anos. Veio do sul para jogar no interior de São Paulo, em uma cidade marcada pela rivalidade polarizada entre os torcedores de dois times.
Um, o Paulinho, atacante rápido e técnico, marcará quatro gols nos primeiros três jogos do campeonato paulista. Outro, o Carlão, era um volante com uma marcação leal, mas dura, roubava a bola e fazia lançamentos certeiros de mais de quarenta metros, marcou um gol e passou a bola para que dois outros fossem marcados do total de seis do seu time nos três primeiros jogos do campeonato paulista.
A próxima rodada seria decisiva para os dois times, haveria confronto direto. A imprensa da região já anunciava o clássico do século. A polícia passou a semana toda atendendo ocorrências envolvendo os torcedores de ambos os times, qualquer discussão de quem seria o melhor, Paulinho ou Carlão, descambava em quebra-quebra.

O “derby” seria no domingo e já na quinta os presidentes dos dois times tiveram que cancelar as respectivas agendas para convocarem juntos às emissoras de rádio e televisão locais uma entrevista coletiva para pregar a paz, na verdade eles somente conseguiram elevar mais a temperatura e a intransigência das torcidas. A entrevista estava ocorrendo relativamente bem até que o repórter do maior canal de televisão da região fez uma pergunta capciosa e, bem na hora do almoço, em frente às televisões, a maioria dos moradores da cidade foram testemunhas de uma cena deprimente: “se as ofensas que os dois presidentes vinham trocando há meses não estariam influenciando os ânimos dos torcedores dos dois times”. Os presidentes sem acreditar no teor da pergunta, afinal eles estavam ali para apaziguar os torcedores e vinha este repórter de merda colocar lenha na fogueira, olharam fixamente para o repórter, depois se entreolharam e, esta troca de olhar fez com que velhas feridas fossem abertas, o mais extrovertido dos dois pegou o microfone e disparou: ”Escuta aqui seu porra, para tentar a paz fui obrigado a aturar esta bicha louca a manhã toda e você vem fazer esta pergunta do cara...”. Antes que ele concluísse a frase o outro lhe atirou uma garrafa de água no rosto, se levantou e partiu para cima distribuindo soco e pontapés. O repórter tentou apartar, mas depois de ter tomado uns tapas “acidentais” acabou desistindo.
Nos telejornais noturnos a cena foi retransmitida para todo o território nacional, com entrevistas de ambos os lados falando em processos por ofensa moral, injúria e danos físicos.

Enfim domingo, dia do grande jogo. As Polícias da cidade solicitaram reforços nas cidades vizinhas e passaram a patrulhar ostensivamente os pontos críticos e os principais caminhos para o estádio. Ocorreram poucos incidentes, havia a suspeita de que as torcidas esperariam para partirem uma para cima da outra ao final da partida e o comandante da Polícia Militar rezava a todos os Deuses que realmente as agressões ocorressem “após” a partida e não “durante” a partida, pois, se isso acontecesse seria uma tragédia maior do que a primeira opção porque ocorreria em ambiente fechado, sem lugar para fugir em caso de pânico.
Começa a partida e todos notaram que a função do Carlão em campo seria ser a sombra do Paulinho e lá pelos vinte minutos do primeiro tempo nenhum dos dois ainda não haviam realizado nada: Paulinho não conseguia ficar desmarcado para receber a bola e o Carlão não armava nada e nem era o paredão na frente dos zagueiros de seu time. O jogo estava burocrático e tedioso. Aos trinta há um escanteio para o time do Carlão e ele vai para a área adversária para tentar o cabeceio, Paulinho vai atrás para marcá-lo, durante o empurra-empurra antes da cobrança o Carlão se vira e dá um murro no rosto do Paulinho que cai desacordado, soube-se depois que perdeu dois dentes e teve fratura do maxilar e suspeita de uma concussão craniana, foi internado. Carlão é expulso na hora. Começa a briga, tanto em campo, quanto nas arquibancadas. Parte dos torcedores invade o gramado, a policia já não consegue dominar a situação e começa a lançar gás lacrimogêneo, o trio de arbitragem, mais o quarto juiz, abandona o campo, diretores de ambos os times trocam sopapos. O representante da federação e o comandante da tropa da Policia Militar se reúnem com os presidentes dos times e chegam à conclusão de que é melhor suspender o jogo para uma nova data em campo neutro. A situação somente foi controlada após três horas com o saldo de um morto e uns oitenta gravemente feridos.
Inicialmente Carlão, no domingo à noite, é tido como o grande responsável pela tragédia. As grandes redes o caçam para uma “exclusiva”, mas ninguém sabe onde encontrá-lo. Quando os médicos autorizaram, Paulinho dá sua entrevista dizendo que não guardava rancor, que ele e o Carlão já se conheciam desde os 18 anos, quando participaram de uma Copa São Paulo de Futebol Junior e já haviam disputado um Sul-Americano pela seleção brasileira sub-vinte, quando dividiram o mesmo quarto na concentração e nos hotéis, não se tornaram amigos, mas sempre tiveram certas afinidades, até passaram a jantar juntos de vez em quando desde que passaram a jogar nos atuais times, etc e tal.
Na quarta surgiu um vídeo na internet de uns vinte segundos em que mostrava o real motivo da agressão: Paulinho, não uma, nem duas, mais várias vezes, enfiava o dedo médio no rabo do Carlão que tentava defender-se dando tapas na mão do Paulinho, até que em um momento de extrema irritação deu o tal soco.
Na quinta pela manhã os jornais estampavam as fotos, em seqüência, tiradas do vídeo e, enfim, os telejornais na hora do almoço absolveram o Carlão. Se pegaria ou não uma pesada suspensão não tinha importância, o importante era que ele provou que era macho e não aceitava desaforos.

No apartamento do Paulinho, sentados no sofá, assistindo televisão bem juntinhos, Carlão, sim era lá que ele fora se esconder, implorava que Paulinho o perdoasse pelos dois dentes e lhe jurava amor eterno.

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