sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Pobres ficam sem recursos mentais para sair da pobreza

 

Redação do Diário da Saúde

 

pobreza-estresse

Quem não tem o suficiente para viver não dispõe de reservas mentais para tentar sair de sua situação. Como ilustração de trabalhadores que não têm meios para escapar de sua situação de pobreza extrema, os dois pesquisadores mostram os cortadores de cana.[Imagem: Princeton University]

A pobreza e as preocupações que a acompanham consomem tanta energia mental que os pobres têm pouco espaço em seus cérebros para qualquer outra coisa.

Como resultado, as pessoas com condições econômicas limitadas são mais propensas a cometer erros e tomar decisões erradas que podem ser amplificadas por seus problemas financeiros - o que ajuda a perpetuar esses problemas.

A conclusão é que ser pobre pode impedir que as pessoas se concentrem em caminhos que poderiam tirá-las da pobreza.

Sem recursos mentais

A função cognitiva decai com o esforço constante, e o esforço para lidar com os efeitos imediatos de ter pouco dinheiro - como arranjar dinheiro para pagar as contas e encontrar formas de cortar despesas - consome toda a "energia cognitiva".

Assim, a pessoa fica com menos "recursos mentais" para se concentrar em assuntos complicados, mas indiretamente relacionados, como a educação, a formação profissional e a gestão do seu tempo.

"Essas pressões criam uma preocupação fundamental na mente, drenando recursos mentais do problema em si. Isso significa que ficamos incapazes de nos concentrar em outras coisas na vida que precisam da nossa atenção," explica Jiaying Zhao, da Universidade da Colúmbia Britânica (Canadá), que acaba de se debruçar sobre o tema.

"Visões anteriores da pobreza costumam atribuir a pobreza a falhas pessoais ou a um ambiente que não é propício para o sucesso. Estamos argumentando que a própria falta de recursos financeiros pode levar a uma função cognitiva deficiente. A própria condição de não ter o suficiente pode realmente ser uma causa da pobreza," diz ele.

Pobreza é mais do que estresse

O custo mental que a pobreza impõe sobre o cérebro é diferente do estresse, defende Eldar Shafir, coautor da análise.

O estresse é a resposta de uma pessoa a várias pressões externas.

Vários estudos indicam que um nível aceitável de estresse de fato pode melhorar o desempenho de uma pessoa.

"O estresse em si não prevê que as pessoas não possam sair-se bem - elas podem sair-se melhor até certo ponto," explica Shafir.

Mas a coisa é muito diferente quando a pessoa não tem os meios materiais necessários para se manter.

"Uma pessoa em situação de pobreza pode estar na parte alta da curva de desempenho quando se trata de uma tarefa específica e, na verdade, nós mostramos que ela sai-se bem na solução do problema que tem à mão.

"Mas ela não tem largura de banda de sobra para se dedicar a outras tarefas. Os pobres são muitas vezes altamente eficazes em focar e lidar com problemas urgentes. É nas outras tarefas que eles se saem mal," conclui o pesquisador.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Bancarrota mnemônica

 

Revista Pesquisa Fapesp

Evandro Affonso Ferreira
© MARCELO HARDT

Tenho a opinião subjetiva de que perdi a memória. Sou vítima por assim dizer da decrepitude mnemônica in totum. Dois três minutos atrás, ou mês passado, não sei direito, tentei inútil trazer à memória quantos filhos deixei de ter. Digo-repito: esforço infrutífero.

Sei que falência mnemônica às vezes é bom, às vezes, ruim – situação dicotômica que só vendo. Gosto de literatura, acho, não me lembro bem. Tenho quase certeza de que gostava de colecionar começos de livros. Por exemplo: Nonada. Sim: Camus. Outro? Hoje mamãe morreu. Ou foi ontem? A-hã: Guimarães Rosa. Acho que cataloguei 200 ou 3.000 primeiros parágrafos de livros famosos, não me lembro direito. Tenho também vaga lembrança de escritor tcheco, parece, morto, Nobel de Literatura, ah: Lobo Antunes, cujo primeiro livro começa mais ou menos assim: Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.

Acho que estava agorinha ouvindo canção de Caetano Veloso, carioca cujo pai foi historiador ilustre, Antonio Candido, autor de Raízes do Brasil, não me lembro direito, sei que a letra dessa música, a que estava ouvindo agorinha, ou foi três meses atrás, não sei, fala de pobre-diabo qualquer que morreu na contramão atrapalhando o tráfego, ou tráfico, apre, deixei escapar da memória.

Sei que é triste perder a lembrança das coisas. Semana passada, ou duas décadas atrás, difícil precisar, tentei recordar-me dele meu primeiro beijo. Não consegui visualizar a fisionomia dela garota de onze anos, ou dele, ixe, em certas ocasiões acho que a mnemonização pode comprometer, ou enriquecer, dependendo do ponto de vista, o próprio currículo – com perdão do trocadilho.

Outro dia achei agenda de telefone na gaveta dele meu criado-mudo. Abri página qualquer assim como quem escolhe ao acaso versículo bíblico: Bovary. Liguei. Atendeu um tal de Doutor Charles dizendo que se eu quisesse mesmo saber sobre o paradeiro dela sua ex-mulher (?) que perguntasse para Flouber Espanca, parece, consigo me lembrar de jeito nenhum o nome que ele havia indicado antes de desligar bruscamente – mostrando indisfarçável rancor cornífero, se assim posso dizer. Depois escolhi outro nome também ao acaso, na tentativa de achar parente próximo: Diadorim. Liguei. Atendeu pessoa de voz nitidamente bissexuada, sotaque britânico, acho, repetindo ad nauseam o refrão to be, or not to be, that is the question, parece, não me lembro bem. Sei que achei tudo muito estranho, batendo dessa vez eu mesmo o telefone na cara dessa figura ambígua de indisfarçável androginia.

Digo-repito: às vezes chega a ser melancólico perder a memória. Sim: melancolia – estado de viva satisfação, de vivo contentamento, regozijo, júbilo, prazer.

Coisa estranha acontecendo agora comigo: estou me lembrando muito vagamente que noutra vida, na Rússia, acho, matei velhota a machadada, cruz-credo, era minha senhoria, parece, não é por obra do acaso que vez em quando tenho pesadelos nos quais aparece sujeito barbudo gritando nele meu ouvido duas palavras que não consigo me lembrar, mas sei direitinho o significado de ambas: delito e punição.

Acho que sou viúvo: tenho duas alianças no dedo da mão esquerda. Sei que não mora ninguém aqui neste lugar, se é que esta é minha casa: estou vendo ali no armário dezenas de troféus referindo-se a basquetebol, estranho, não consigo me lembrar que eu hoje com um metro e meio já fui muito alto um dia. Não sei, mas acho que seria esquisito perguntar agora para o morador do apartamento vizinho se eu moro no apartamento ao lado. Situação constrangedoramente mnêmica. Outro detalhe: não vejo estante de livros na sala. Será que eu nunca gostei de ler? Não acredito que o motivo pelo qual tenho a vista cansada seja só porque talvez tenha gostado vida quase toda de olhar para trás pra ver regiões glúteas femininas, ou masculinas, não consigo me lembrar agora dela minha preferência sexual. Sei que tenho duas alianças no dedo da mão esquerda.

Às vezes sinto vontade de sair pelas ruas desta cidade perguntando para todo mundo: “Você por acaso saberia me dizer quem sou eu ou quem eu sou?” Mas, digo-repito: a bancarrota mnemônica tem vantagens de desvantagens. Só consigo me lembrar de uma vantagem: não sentir saudade. Desvantagem? Idem, idem: não sentir saudade. Consigo me lembrar sob hipótese alguma que idade tinha quando fiz sexo pela primeira vez – tampouco quando fiz pela última vez. Sim: sexo – dormir, conservar-se entregue ao sono, estar adormecido.

Acho que estou tendo agora neste exato momento ideia que poderá possivelmente resolver de vez meu problema de identidade: criar uma autobiografia, inventar para mim mesmo história de vida que nunca aconteceu com ninguém, mas que será minha. Vou anotar aqui neste caderno para nunca mais esquecer.
Digamos que foi assim: nasci em 1892, nos confins orientais da Europa, mais exatamente em Drohobycz, que antes da Primeira Guerra Mundial pertenceu ao império austro-húngaro, mas que desde a minha infância é uma cidade da Polônia. Pronto: sou polonês. Este detalhe que vem a seguir não é preciso inventar: sou baixo, tímido, cerimoniosamente irônico. Ah vou dizer que fui escritor, que transformei a banalidade de cada dia num outro universo – onírico, lírico, profético; teatral e barroco, sufocante e delicioso. NumaRepública dos sonhos. Poderei dar a mim mesmo o nome de Bruno. Poderei ter escrito apenas dois livros… Vou chamá-los de Sanatório e As lojas de canela. Serei por assim dizer o escritor dos escritores. Vou criar para mim mesmo um adorador brasileiro incondicional, também escritor, que escreverá livros esquisitos de nomes ainda mais esquisitos ainda… Digamos: Erefuê, Zaratempô, Grogotó. Sei não, sei não, tenho medo desta história inventada para eu mesmo terminar dolorosamente num campo de concentração… Melhor riscar tudo isso. Outro dia invento outra possível biografia própria.


Evandro Affonso Ferreira nasceu em Araxá-MG, em 1945, e mora em São Paulo há mais de 40 anos. É autor de diversos romances, entre eles Araã!, Erefuê!, Zaratempô, Minha mãe se matou sem dizer adeus e O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam.

segunda-feira, 5 de março de 2012

O que é morrer hoje em dia.

humberto o sousa



Você sabe o que é pânico?
Eu sei, pois a única coisa que me restou foi ele.
Belo dia, digo noite, estou para me deitar, sento-me na beirada da cama, tiro os chinelos e começo a deitar, a cabeça procurando o travesseiro para o merecido descanso e então acontece. Apaguei.
Não foi um simples desmaio. Apaguei mesmo. Perdi toda a noção de meu corpo e de minha mente. Não havia nada.
O nada é incrível. Sem luz ou escuridão, calor ou frio, dor ou prazer. Nada. Estas coisas simplesmente não existem no nada. Nem o nada existe no nada, pois para não haver nada algo deveria estar ocupando o lugar antes.
Então apareceu no nada uma longa planilha eletrônica feita no Excel. Eu não estava simplesmente vendo a planilha, eu era a planilha. Em frios números eletrônicos estava registrada toda a minha vida: onde errei e onde acertei, onde chorei e fiz chorar, onde sofri e fiz sofrer.
Aos poucos até mesmo a sensação de ser somente uma planilha foi esvanecendo, apagando, fui perdendo a noção de compreender o que eram aqueles números, o seu significado. A memória do que eu era, minhas emoções e meus desejos se foram, só restou o medo absoluto, o pânico, do nada.
Em algum lugar apareceu uma tarja com os dizeres “O Humberto não está respondendo. Você deseja:
  • Encerrar o programa;
  • Reiniciar o programa;
  • Aguardar o programa responder.”
Em meu pânico supremo eu grito para Deus aguardar.
Então estamos aguardando, eu e Deus, o programa voltar a responder.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Argumento para filme de Kung Fú

 

humberto  o sousa

 

Outro dia estava discutindo com um amigo meu, o Nelsinho, sobre a babaquice de uma história que ele estava escrevendo, totalmente sem noção. Era sobre vampiros que começaria com esta pérola: “… e como uma gazela saltitante ele pulou sobre a sua vítima.”. Eu argumentei que um vampiro jamais se comportaria como uma gazela saltitante por mais viadinho que fosse, ele respondia que era para ser totalmente sem noção mesmo. Lembrei-me que também já havia escrito uma merda no mesmo estilo, então resolví colocá-la aqui, eu a acho divertida, espero que quem ler também goste.

 

Argumento para filme de Kung Fú


A história se passa na época do Imperador Qin.
Um de seus principais generais, Fúmanchu caiu em desgraça porque estava fumando muito ópio, e foi exilado no deserto de Gobi e lá se casou com uma princesa mongol chamada Ka Ba Soo.
O casal teve três filhos: Tii Fú, Lee Fú e o caçula, nascido na época das vacas magras, Sii Fú.
O pai adestra-os na arte da guerra tornando-os exímios espadachins.
Quando o jovem Sii Fú completa dezesete anos o pai adoece e vislumbrando a morte que se aproxima manda chamar os três filhos e lhes pede para viajarem à capital e se porem ao serviço do Imperador Qin, servirem-no com coragem e lealdade e resgatar a honra da fámilia. Dois dias após, o velho Fú morre.
Então os irmãos partem em uma jornada épica, lutando e derrotando salteadores de estrada, taberneiros ladrões e xanas sedentas.
Ao chegarem à capital notam que a fama os precedeu e são levados imediatamente ao palácio Imperial.
Em audiência com o Imperador informam-no do falecimento do pai e o seu último pedido, então este lhes propõe um teste: há na fronteira sul do império uma montanha há, em seu cume, uma caverna onde mora um dragão feroz, chamado Pu'm Long que assola as vilas da região, queima as plantações e sequestra todos os jovens abaixo de vinte anos, que nunca mais são vistos, se eles derrotarem-no serão admitidos no serviço das tropas imperiais, desde que não fumem ópio.
Partem em outra jornada épica, lutando e derrotando mais salteadores de estrada, mais taberneiros ladrões e duas vezes mais xanas sedentas.
Ao chegarem ao pé da montanha do dragão descobrem uma taverna, A Rosca Queimada, e resolvem comer algo, beber alguma coisa, descasarem e colherem informações.
O proprietário, atende a todas as necessidades dos herois, dando-lhes, inclusive a sua famosa rosca, mas aconselha que eles bebam o máximo possível para enfrentar Pu'm Long. Tii Fú desdenha do taberneiro, Lee Fú toma somente um jarro de bebida e somente Sii Fú aceita o conselho e toma meio tonel de vinho de arroz, ficando tão bêbado que os irmãos mais velhos tiveram que arrastá-lo montanha acima.
Ao chegarem no topo, avistaram, há uns trinta metros, a entrada negra e fedorenta, cheirando a peixe e a queijo gorgonzola, da gruta do dragão, então Tii Fú, por ser o mais velho, espada em riste, é o primeiro a atacar, mas não chegou a dar dez passos em direção ao buraco mal cheiroso e a espada quedou no chão, inerte, então ele dá meia volta e saí correndo a toda velocidade em direção ao sopé da montanha.
Então Lee Fú, o segundo mais velho, saca a espada, dá um grito furioso e parte para o ataque, conseguindo chegar até a entrada do fétido buraco, mas ao ter um vislumbre do dragão, sua espada amoleceu e apontou para o chão, então deu meia vota e seguiu seu irmão mais velho.
Sobrou então para o pobre Sii Fu, que de tão bêbado nem sacou a espada, iria enfrentar a fera no corpo a corpo mesmo. Depois de duas horas e meia de luta, marcada por ataques e recuos, idas e vindas, alternando ora ele por cima do dragão, ora por baixo, Pu'm Long soltou um longo suspiro e caiu desfalecido pelo cansaço e, só então, nosso heroi sacou a espada e cortou-lhe a cabeça, embrulhou em sua túnica, pegou o cavalo e galopou até a capital, entregando a cabeça ao Imperador.
Como recompensa recebeu a mão de uma das filhas do Imperador e uma província para governar.
É dai que vem o ditado: não existe dragão feio, você é que bebeu pouco.

sábado, 13 de agosto de 2011

Mal entendido

humberto o sousa

Claro que aquilo tudo era pura bobagem. Onde já se viu dizer que mulheres teriam direito a alguma coisa. Só não me levanto e vou dar uns tapas nesta dona porque sou educado. Pela aliança na mão esquerda deve ser casada, o marido desta vaca é um frouxo. Eu deveria é ir embora. Mas tudo bem fico e escuto esta conversa fiada.

Lá em casa o papo é outro. Primeiro foi a Djanira que começou a reclamar que estava insatisfeita sexualmente, eu não fazia gozar e tal, dei-lhe uma surra e coloquei ela na rua. Não sou homem de viver com vagabundas.

Depois a Vilma. Previdente, como sou, mantinha ela trancada em casa. Vá lá saber se ela era vagabunda que nem a outra? Belo dia cheguei e ela havia sumido, arrombou a janela e fugiu. Acertei, era vagabunda que nem a outra.

A última, a Socorro, parece que eu tinha finalmente acertado. Era do interior de Minas e veio para cá sozinha para trabalhar. Começamos a morar juntos e ela tinha como único objetivo me satisfazer e eu era feliz. Um dia cheguei em casa e ela estava lá no sofá segurando a mão de um rapaz. Não pensei duas vezes, tirei o revolver da cintura e matei os dois. No momento havia um carro de polícia passando, e ao ouvir tiros foram investigar, acabei preso em flagrante. Na delegacia aleguei defesa da honra. O delegado me mostrou então os documentos das “vitimas”, ele falava “vitimaas” com a boca cheia, e eles eram irmãos.

Não basta estar sendo julgado por um simples mal entendido ainda tenho que ficar ouvindo desaforos desta tal de promotora. Só não levanto e dou uns tapas nela porque sou educado...

sábado, 26 de março de 2011

O dono

humberto o sousa


Eles cinco, quando um professor separou a classe em grupos aleatórios para execução de trabalhos no primeiro dia de aula na faculdade, foram escolhidos para ser Grupo III e acabaram se tornando amigos. Eleninha, Claudia, Maria Inês, Carlos e Janjão (que era Antonio Pedro, mas tinha cara de Janjão, o que quer que isso se pareça).
A amizade deles foi ficando cada vez mais sólida por um motivo bem simples, apesar de viajarem sempre juntos para a praia, apartamento dos pais da Eleninha, ou passarem férias no sítio da família do Janjão, os rapazes nunca deram em cima das moças, a Eleninha era um tribufu, mas as outras duas eram de parar o trânsito. O restante dos colegas de classe chegaram a comentar que os dois não cantavam elas por estarem ocupados demais um com o outro, o que as três amigas reputavam à inveja.
Até a monografia de conclusão de curso, que era para ser feito em duplas e um deles ficaria sobrando, resolveram fazer individualmente e na verdade o que fizeram foram cinco monografias, sobre cinco temas diferentes, em grupo.
Depois de formados foram perdendo contato um com o outro, cada um constituindo família e investindo na carreira profissional, por falta absoluta de tempo.
Cerca de dez anos após a formatura, a Eleninha, que estava de casamento marcado, resolveu procurá-los um a um, pedindo endereço para mandar o convite. Conforme ela ia fazendo contato ia divulgando o telefone e endereço dos outros participantes do Grupo III, que voltaram a conversar e resolveram de comum acordo jantarem em uma churrascaria para comemorarem o reencontro. Poderiam levar os maridos e esposa, no caso de Carlos, Eleninha levaria o noivo e o Janjão levaria a atual namorada.
No dia e local marcado todos chegaram no horário. No início houve certa inibição, talvez por haver pessoas estranhas ao grupo, mas após as primeiras rodadas de chopes a intimidade do grupo foi retornando e até os “estranhos” sentiram que estavam entre amigos de longa data.
O problema começou quando o Carlos parou de tomar chope e passou a tomar caipirinhas como se fosse água, ficando completamente embriagado. Sua esposa começou a ficar incomodada e demonstrou irritação, nada adiantou, então resolveu partir para o bom humor, mais por vingança do que outra coisa (o ano anterior havia sido excelente para ambos e conseguiram antecipar o pagamento de seis anos do financiamento da casa própria, quitando-a. Nas festas de fim de ano ela estava tão feliz que ficou totalmente bêbada, acordando no dia seguinte com a bunda ardendo, comentou com o marido que respondeu na maior cara de pau: “Comi tua bunda. Cú de bêbado não tem dono mesmo”), e fez o fatídico comentário: “Carlinhos, meu amor, não esqueça que cú de bêbado não tem dono”, dando em seguida uma risada nervosa. A resposta de Carlos é que acabou com a festa, e também com o casamento : “Cê que pensa que não tem dono, né Janjão”.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Retorno

humberto o sousa 

 

... teoricamente falando, claro. Eu meditei bastante e cheguei à conclusão que a vida é uma grande merda. Veja você que coisa esquisita, quando era garoto conheci uma menina horrível, gorda, cheia de bereba no rosto, mau hálito e dentes todos tortos. Ela falava para todo mundo que era apaixonada por mim e, lógico, eu morria de vergonha, mas nunca a destratei. Quando havia uma festinha qualquer eu sempre dançava uma ou duas músicas com ela para que se sentisse feliz. Uma semana antes do “grande evento” – você já deve estar cansada de ouvir esta história, mas vou continuar contando mesmo assim – fui ao meu banco renegociar um empréstimo e quem que era a nova gerente? Não precisa responder. Era ela. Como era da minha idade deveria ter uns quarenta e cinco anos, mas não aparentava mais de trinta. Eu não a reconheci de imediato, na verdade ela que me reconheceu e disse quem era. Estava linda, com o corpo perfeito, solteira e desimpedida, almoçamos juntos naquele dia e nos encontramos mais duas vezes antes de irmos para o motel, justamente no dia do “grande evento”.

- Por outro lado, casei-me com a mulher mais linda e meiga que já havia visto na vida, e quinze anos depois estava gorda, relaxada e rabugenta. Não diga que eu não a deixava trabalhar e fiz três filhos nela, não é esta a questão, os motivos não importam o que importa são as voltas que o mundo dá, ou dava.

- No dia do “grande evento”, depois de uma tarde maravilhosa passada no motel, voltei para casa e começou o inferno. Minha esposa queria saber aonde eu tinha tomado banho, o cheiro de sabonete e meus cabelos ainda úmidos não me deixariam mentir, então peguei o carro e saí. Entrei no primeiro bar decente e bebi, bebi, bebi. Bebi tanto que nem me lembro como cheguei aqui. Quando acordei e vi estas paredes brancas e esta luz intensa, mas que não fere os olhos, pensei que estava morto. Depois você entrou e começou a aplicar-me injeções, pensei que estava em um hospital. Só comecei a desconfiar de que não era uma coisa nem outra quando te reconheci. Você é uma mistura das duas: uma quando jovem e a outra já madura. Você é a mistura dos dois grandes amores da minha vida que somente poderia ser forjada pelo meu espírito e...

Neste momento ouviu claramente em sua mente um aviso curto e seco, mas de uma voz amiga e apaixonada: “Chegamos”.

Há certo tempo, ele e sua nave, foram atacados por três espaçonaves desconhecidas quando estava tentando fazer contato. Dispararam uma salva de mísseis atômicos e, se não fossem as paredes de mais de quinhentos metros a sua nave seria fatalmente destruída, fugiram. Os danos foram imensos e ele não poderia seguir os agressores, mas enviou uma sonda para acompanhá-los sem ser notada enquanto a sua nave se auto reparava. Duas semanas atrás finalmente recebeu uma mensagem comunicando o destino das tais neves, uma estrela a uns dez anos luz de distância e seguiu para lá e agora chegaram.

A sonda começou a enviar-lhe imagens. No princípio ele não acreditou, mas aqueles anéis eram inconfundíveis e depois a Grande Mancha Vermelha ainda estava no equador do maior planeta do sistema.

Uma lágrima lhe escorre pelo rosto. Após oito mil anos sem ver um rosto humano de verdade ele teria que destruir toda a humanidade. A missão daquela nave, e dele como seu único ocupante, era destruir as raças agressoras que porventura saíssem de seus planetas.

humberto.sousa@etec.sp.gov.br