Revista Pesquisa Fapesp
Evandro Affonso Ferreira
© MARCELO HARDT
Tenho a opinião subjetiva de que perdi a memória. Sou vítima por assim dizer
da decrepitude mnemônica
in totum. Dois três minutos atrás, ou mês
passado, não sei direito, tentei inútil trazer à memória quantos filhos deixei
de ter. Digo-repito: esforço infrutífero.
Sei que falência mnemônica às vezes é bom, às vezes, ruim – situação
dicotômica que só vendo. Gosto de literatura, acho, não me lembro bem. Tenho
quase certeza de que gostava de colecionar começos de livros. Por exemplo:
Nonada. Sim: Camus. Outro?
Hoje mamãe morreu. Ou foi ontem? A-hã:
Guimarães Rosa. Acho que cataloguei 200 ou 3.000 primeiros parágrafos de livros
famosos, não me lembro direito. Tenho também vaga lembrança de escritor tcheco,
parece, morto, Nobel de Literatura, ah: Lobo Antunes, cujo primeiro livro começa
mais ou menos assim:
Todas as famílias felizes se parecem, cada família
infeliz é infeliz à sua maneira.
Acho que estava agorinha ouvindo canção de Caetano Veloso, carioca cujo pai
foi historiador ilustre, Antonio Candido, autor de
Raízes do Brasil,
não me lembro direito, sei que a letra dessa música, a que estava ouvindo
agorinha, ou foi três meses atrás, não sei, fala de pobre-diabo qualquer que
morreu na contramão atrapalhando o tráfego, ou tráfico, apre, deixei escapar da
memória.
Sei que é triste perder a lembrança das coisas. Semana passada, ou duas
décadas atrás, difícil precisar, tentei recordar-me dele meu primeiro beijo. Não
consegui visualizar a fisionomia dela garota de onze anos, ou dele, ixe, em
certas ocasiões acho que a mnemonização pode comprometer, ou enriquecer,
dependendo do ponto de vista, o próprio currículo – com perdão do trocadilho.
Outro dia achei agenda de telefone na gaveta dele meu criado-mudo. Abri
página qualquer assim como quem escolhe ao acaso versículo bíblico: Bovary.
Liguei. Atendeu um tal de Doutor Charles dizendo que se eu quisesse mesmo saber
sobre o paradeiro dela sua ex-mulher (?) que perguntasse para Flouber Espanca,
parece, consigo me lembrar de jeito nenhum o nome que ele havia indicado antes
de desligar bruscamente – mostrando indisfarçável rancor cornífero, se assim
posso dizer. Depois escolhi outro nome também ao acaso, na tentativa de achar
parente próximo: Diadorim. Liguei. Atendeu pessoa de voz nitidamente bissexuada,
sotaque britânico, acho, repetindo
ad nauseam o refrão
to be,
or
not to be, that is the question, parece, não me lembro bem. Sei que
achei tudo muito estranho, batendo dessa vez eu mesmo o telefone na cara dessa
figura ambígua de indisfarçável androginia.
Digo-repito: às vezes chega a ser melancólico perder a memória. Sim:
melancolia – estado de viva satisfação, de vivo contentamento, regozijo, júbilo,
prazer.
Coisa estranha acontecendo agora comigo: estou me lembrando muito vagamente
que noutra vida, na Rússia, acho, matei velhota a machadada, cruz-credo, era
minha senhoria, parece, não é por obra do acaso que vez em quando tenho
pesadelos nos quais aparece sujeito barbudo gritando nele meu ouvido duas
palavras que não consigo me lembrar, mas sei direitinho o significado de ambas:
delito e punição.
Acho que sou viúvo: tenho duas alianças no dedo da mão esquerda. Sei que não
mora ninguém aqui neste lugar, se é que esta é minha casa: estou vendo ali no
armário dezenas de troféus referindo-se a basquetebol, estranho, não consigo me
lembrar que eu hoje com um metro e meio já fui muito alto um dia. Não sei, mas
acho que seria esquisito perguntar agora para o morador do apartamento vizinho
se eu moro no apartamento ao lado. Situação constrangedoramente mnêmica. Outro
detalhe: não vejo estante de livros na sala. Será que eu nunca gostei de ler?
Não acredito que o motivo pelo qual tenho a vista cansada seja só porque talvez
tenha gostado vida quase toda de olhar para trás pra ver regiões glúteas
femininas, ou masculinas, não consigo me lembrar agora dela minha preferência
sexual. Sei que tenho duas alianças no dedo da mão esquerda.
Às vezes sinto vontade de sair pelas ruas desta cidade perguntando para todo
mundo: “Você por acaso saberia me dizer quem sou eu ou quem eu sou?” Mas,
digo-repito: a bancarrota mnemônica tem vantagens de desvantagens. Só consigo me
lembrar de uma vantagem: não sentir saudade. Desvantagem? Idem, idem: não sentir
saudade. Consigo me lembrar sob hipótese alguma que idade tinha quando fiz sexo
pela primeira vez – tampouco quando fiz pela última vez. Sim: sexo – dormir,
conservar-se entregue ao sono, estar adormecido.
Acho que estou tendo agora neste exato momento ideia que poderá possivelmente
resolver de vez meu problema de identidade: criar uma autobiografia, inventar
para mim mesmo história de vida que nunca aconteceu com ninguém, mas que será
minha. Vou anotar aqui neste caderno para nunca mais esquecer.
Digamos que foi
assim: nasci em 1892, nos confins orientais da Europa, mais exatamente em
Drohobycz, que antes da Primeira Guerra Mundial pertenceu ao império
austro-húngaro, mas que desde a minha infância é uma cidade da Polônia. Pronto:
sou polonês. Este detalhe que vem a seguir não é preciso inventar: sou baixo,
tímido, cerimoniosamente irônico. Ah vou dizer que fui escritor, que transformei
a banalidade de cada dia num outro universo – onírico, lírico, profético;
teatral e barroco, sufocante e delicioso. Numa
República dos sonhos.
Poderei dar a mim mesmo o nome de Bruno. Poderei ter escrito apenas dois livros…
Vou chamá-los de
Sanatório e As lojas de canela. Serei por assim dizer
o escritor dos escritores. Vou criar para mim mesmo um adorador brasileiro
incondicional, também escritor, que escreverá livros esquisitos de nomes ainda
mais esquisitos ainda… Digamos: Erefuê, Zaratempô, Grogotó. Sei não, sei não,
tenho medo desta história inventada para eu mesmo terminar dolorosamente num
campo de concentração… Melhor riscar tudo isso. Outro dia invento outra possível
biografia própria.
Evandro Affonso Ferreira nasceu em Araxá-MG, em 1945, e mora
em São Paulo há mais de 40 anos.
É autor de diversos romances, entre eles
Araã!, Erefuê!, Zaratempô, Minha mãe se matou sem dizer adeus e O mendigo que
sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam.