domingo, 8 de novembro de 2009

Quando a violência policial não (?) se justifica

humberto o sousa


Conheço o Zezinho há quinze anos, nem bem descarregamos a mudança e ele já estava tocando a campainha oferecendo os seus serviços de trabalhador free-lance (biscateiro).
Ele deveria ter uns dezoito anos nesta época e durante os quatro anos seguintes ajudou-me a cortar grama e trepadeira, reparar instalações elétricas, pintar a casa, etc.
Eu e minha esposa fomos seus padrinhos de casamento, nasceu-lhe o primeiro filho e ele deixou a vida de biscateiro conseguindo um emprego fixo e, tendo renda mensal líquida e certa, pôde enfim deixar de morar com a sogra e alugar uma casinha.
Como tudo começou a dar errado eu sinceramente não sei, só sei que, ao sair do trabalho, passou a freqüentar botecos, daqueles conhecidos como “copo sujo”, somente indo para casa depois de estar completamente bêbado. Nenhuma esposa agüentaria isso e a dele não agüentou, pegou a mala e o filho e voltou para a casa da mãe, como ele não tomou nenhuma medida para trazê-la de volta, todos comentaram que ele nem deve ter notado que ela se foi.
Perdeu o emprego e voltou a fazer biscates, claro que ele não agüentava mais o batente, mesmo assim eu voltei a chamá-lo para me ajudar, não fazia nada, mas me distraia ouvir as suas aventuras boemias. Esta boa ação somente durou até eu pegá-lo fumando um cigarro de cheiro estranho na varanda de minha casa. Coloquei ele para correr.
Soube que ele havia se amigado com uma senhora uns vinte anos mais velha do que ele e bebia a mais na mesma proporção. Morava o casal mais a filha dela, viúva, e os dois netos da anciã. O romance acabou abruptamente quando a velhinha acordou de um porre e pegou o Zezinho na cama com a sua filha. Sob ameaça de ser capado, Zezinho fugiu levando junto a filha, deixando os netos para trás.
Sempre que me via pedia uns trocados, minha esposa quando fazia compras no mercado, não se esquecia de comprar alguns mantimentos para ele e a atual amante.
Começaram as prisões: furto, assalto a mão armada (canivete), posse de substâncias ilegais etc. O Delegado contou para minha esposa que somente o prendia quando precisava saber quem estava vendendo “crack”, não precisava nem perguntar “Zezinho, você ta comprando droga de quem?”. Ele já entrava na sala falando “Seu Delega, fulano é quem tá me vendendo”.

Estou contando a história do Zezinho para que entendam que o principal personagem deste escrito é responsável pelo título.

Há uns quinze dias atrás tive um problema elétrico com meu carro, como moro na zona rural, caminhei alegremente os sete quilômetros até a cidade sob um Sol de assar leitão à pururuca. O eletricista falou que o problema era simples, para ele não para mim, era só trocar o miolo da chave de partida, confesso que fiquei imaginando como ele ia trocar o miolo da minha chave, pediu para eu esperar trinta minutos, era o tempo que levaria para acabar o serviço que estava fazendo e partiríamos, como era “simples” , ele já levaria a peça e faria o serviço lá mesmo em minha casa (levou cinco minutos para consertar a droga do meu carro, realmente era simples).
Fiquei sentado na porta da oficina e de repente acabou o sossego.
Lá vem o Zezinho em desabalada carreira pela rua, com metade da cidade atrás querendo linchá-lo, a sorte dele é que chegou uma viatura policial. Os dois policiais desceram, era o Kabim (“baixim, pretim, espevitadim e com cara de bobim”) e o Hulk (“grandão, bundão, ignorantão, ... um monte de ão ... acabando com cara de bobão”).
Protegeram Zezinho e perguntaram para a turba enraivecida o que estava acontecendo, eu havia me aproximado para ouvir também, e o ocorrido foi o seguinte: Dna ... havia ido ao mercado comprar fraudas para a filha, saibam que ela tem dezoito anos e idade mental de três, e quando voltou encontrou aquele filho de uma puta, desculpa para a tua mãe Zezinho, ela é uma santa e não merece o filho que tem, beijando a sua filha seminua.
Perguntaram para o Zezinho se era verdade, respondeu que era, ele estava passando por ali e viu a Dna ... saindo, deixando a casa aberta, resolveu entrar para pegar alguma coisinha para fazer dinheiro, quando viu aquele mulherão, nua da cintura para baixo, rindo feito boba para ele, com ou sem paralisia cerebral ele resolveu traçá-la e foi aí que a mãe dela voltou e aprontou aquele escândalo, e ele teve que fugir.
Kabim mandou Zezinho se virar para ele por as algemas, na maior educação, o problema é que quando ele se virou, já pondo as mãos para trás, ele viu o Hulk, segurando o riso e com cara de deboche. Zezinho não pensou duas vezes e antes que alguém pudesse impedi-lo partiu para cima do Hulk, pulando com os dois pés no peito dele, jogando-o ao chão, o policial, ágil como um gato, levantou com um salto e desceu o braço no Zezinho, que caiu. Nunca vi ninguém apanhar tanto na vida, fiquei com pena mas a platéia estava aplaudindo e incentivando o policial a chutar mais. Por fim o Kabim conseguiu conter o companheiro e transportara o infeliz para a delegacia semi-desfalecido.

Ontem, sábado, pela manhã, sai do serviço e no caminho para a padaria cruzei com o Zezinho, mais enrolado em bandagens que uma múmia. Naturalmente ele me parou para pedir uns trocados e eu naturalmente dei foi quando ele lascou a pergunta: “Cumpadi, cê tava lá quando me prenderam?”, respondi que sim e ele, com um sorriso safado no rosto, faz a seguinte comentário:”Se você acha que eu apanhei muito, deveria ter visto o tanto que apanhei na delegacia”, e vai embora.
Fico pensando com meus botões que ele mereceu tudo o que recebeu.