quarta-feira, 31 de março de 2010

O Nestor morreu!


humberto o sousa

- Mas quando? Ainda ontem à tarde tomamos uma cerveja juntos lá no bar do Bigode.
- Foi lá mesmo que ele morreu, deram dois tiros nele, um na barriga e outro na cabeça.

Qual não foi minha surpresa quando, há uns oito anos, ao atender o toque da campainha, deparei-me com um sujeito de cabelos e barba longos grisalhos, pensei imediatamente em Papai Noel. Achei que já o conhecia de outro lugar:
- Por favor, onde posso encontrar ... Dadá!?
Ao ouvir o velho apelido não tive mais dívidas, era o Alípio. Havíamos servido o Exército, e tomamos muitos porres, juntos há mais de vinte anos.
Abraçamos-nos e a velha amizade logo recomeçou do ponto em que havia parado.
Ele contou que era Delegado de Policia e estava sendo transferido para nossa cidade e procurava uma casa localizada em um lugar tranqüilo e indicaram, que coincidência, a terceira casa além da minha e estava tentando falar com o proprietário. Chamou a esposa, que estava dentro do carro, estacionado em frente à pretendida, entramos, famílias apresentadas, afinidades descobertas.
Liguei para o proprietário da tal casa, e ali mesmo fecharam negócio, quinze dias depois mudaram de mala e cuia.

De um total de trinta e duas casas, somente sete eram ocupadas permanentemente por seus proprietários, alguns dos outros passavam o fim de semana e o restante somente vinham uma ou duas vezes por ano.
Dos sete dois eram aposentados e ficavam à parte dos outros cinco, cuidando de seus jardins e pescando nos finais de tarde, distribuindo peixes frescos para a vizinhança toda. Já Cacau, Nestor, Alípio (Dr. Delegado), Jorge e eu trabalhávamos na pequena cidade próxima e ao final do dia, sempre nos encontrávamos no último boteco da cidade, que ficava bem no fim do asfalto, o famoso Bar do Bigode, na realidade um verdadeiro copo sujo, daqueles que os homens adoram, com sua mesa de bilhar e cerveja sempre no ponto certo.
Deste companheirismo de boteco surgiu uma sólida amizade entre nossas famílias, com churrascos em quase todos os fins de semana ou a reunião para assistir algum jogo de futebol, os homens na sala, as mulheres na cozinha e as crianças só Deus sabe onde.
A coisa toda começou a desandar quando surgiu a suspeita de que o Nestor estava comendo a esposa do Cacau. Ninguém comentava nada, mas nossas reuniões passaram a ser permeadas por silêncios constrangidos.

Naquele sábado cedo estava eu tranquilamente podando a trepadeira do muro da frente quando vejo o Dr. Delegado sair da casa dele, só de sunga, garrafa térmica em uma das mãos. Entrou em minha casa, sem pedir licença, voltou com uma cadeira e dois copos, sentou-se e colocando um dos copos entre as pernas, encheu o outro com o conteúdo da garrafa, era caipirinha de vodca, e me passou.
Com o copo na mão acomodei-me no chão ao seu lado, e, antes de tomar o primeiro gole, ele disparou:
- O Nestor morreu!
- Mas quando? Ainda ontem à tarde tomamos uma cerveja juntos lá no bar do Bigode.
- Foi lá mesmo que ele morreu, deram dois tiros nele, um na barriga e outro na cabeça.
- Quem?

Na quinta feira anterior, três horas da tarde, o Nestor me liga dizendo que estava indo para a cidade (quando neste horário ele deveria estar na cidade trabalhando, será que ele não estaria visitando a mulher do Cacau?), e quebrou o amortecedor ao passar por um dos vários buracos existentes na estrada, eu não poderia ir socorrê-lo?
Claro que podia. Peguei meu carro e fui buscá-lo e deixei-o no mecânico que iria voltar com ele para ver se foi realmente o amortecedor e voltei para o serviço. Só voltei a encontrá-lo na sexta feira a noite lá no Bigode.
Tomamos uma cerveja juntos, e ele perguntou se eu tinha visto o carro dele, falei que não, e ele foi mostrar-me.
Alguém tinha, aos de socos e pontapés, feito mossas enormes nas laterais e no capô do veículo. Perguntei se ele sabia quem foi, disse que não mas um dia iria descobrir. Perguntei se iria para a casa, disse que não, tinha que ir a uma reunião na OAB da cidade e somente estaria livre lá pelas dez. Foi a ultima vez que eu o tinha visto.
O Alípio ouviu atentamente meu relato, em seu rosto não havia um pingo de amizade, somente a frieza do profissional querendo a verdade.

-Conte-me o que aconteceu, pedi.
- Bem, lá pela meia noite o Bigode me ligou. Era para ir urgente. Mataram o Nestor. Fui imediatamente. Chegando lá encontrei a vitima imóvel caída em meio à uma poça de sangue. Verifiquei os sinais vitais e não havia nenhum, constatando que estava morto. Interroguei o Sr. Bigode e ele fez o seguinte relato: a vitima, Sr. Nestor adentrou em seu estabelecimento por volta de 22:30 (vinte e duas horas e trinta minutos), pediu uma cerveja e foi prontamente atendido. A testemunha afirma que ficaram conversando até as 23:00 (vinte e três horas), quando chegou o indivíduo conhecido pela denominação de Cacau, sentou-se com a vítima e passaram a animadamente conversar sobre futebol, ambos, pelo que todos sabiam, torciam pelo mesmo time, tomando várias garrafas de cerveja. Após certo tempo o Sr. Nestor começou a falar de seu veículo, afirmando que “Quando descobrisse o corno filho da puta que havia feito aquilo” iria quebrar a cara dele. Ao ouvir isto o Sr. Cacau levantou-se foi até o seu próprio veículo e voltou portando um revolver, aparentemente calibre 22, e disparou o primeiro tiro no abdômen da vitima e gritando que “Pode me chamar de corno, eu sou mesmo, mas não admito que me chame de filho da puta” e efetuou o segundo disparo na cabeça do falecido. Pelo relato da testemunha, o suspeito pediu a conta e, após paga-la, evadiu

sexta-feira, 5 de março de 2010

Futebol é para macho


humberto o sousa

Um, João Paulo, conhecido como Paulinho, tinha 1,74 m e 22 anos. Veio do nordeste para jogar no interior de São Paulo, em uma cidade marcada pela rivalidade polarizada entre os torcedores de dois times.
O outro, João Carlos, conhecido como Carlão, tinha 1,80 m e 22 anos. Veio do sul para jogar no interior de São Paulo, em uma cidade marcada pela rivalidade polarizada entre os torcedores de dois times.
Um, o Paulinho, atacante rápido e técnico, marcará quatro gols nos primeiros três jogos do campeonato paulista. Outro, o Carlão, era um volante com uma marcação leal, mas dura, roubava a bola e fazia lançamentos certeiros de mais de quarenta metros, marcou um gol e passou a bola para que dois outros fossem marcados do total de seis do seu time nos três primeiros jogos do campeonato paulista.
A próxima rodada seria decisiva para os dois times, haveria confronto direto. A imprensa da região já anunciava o clássico do século. A polícia passou a semana toda atendendo ocorrências envolvendo os torcedores de ambos os times, qualquer discussão de quem seria o melhor, Paulinho ou Carlão, descambava em quebra-quebra.

O “derby” seria no domingo e já na quinta os presidentes dos dois times tiveram que cancelar as respectivas agendas para convocarem juntos às emissoras de rádio e televisão locais uma entrevista coletiva para pregar a paz, na verdade eles somente conseguiram elevar mais a temperatura e a intransigência das torcidas. A entrevista estava ocorrendo relativamente bem até que o repórter do maior canal de televisão da região fez uma pergunta capciosa e, bem na hora do almoço, em frente às televisões, a maioria dos moradores da cidade foram testemunhas de uma cena deprimente: “se as ofensas que os dois presidentes vinham trocando há meses não estariam influenciando os ânimos dos torcedores dos dois times”. Os presidentes sem acreditar no teor da pergunta, afinal eles estavam ali para apaziguar os torcedores e vinha este repórter de merda colocar lenha na fogueira, olharam fixamente para o repórter, depois se entreolharam e, esta troca de olhar fez com que velhas feridas fossem abertas, o mais extrovertido dos dois pegou o microfone e disparou: ”Escuta aqui seu porra, para tentar a paz fui obrigado a aturar esta bicha louca a manhã toda e você vem fazer esta pergunta do cara...”. Antes que ele concluísse a frase o outro lhe atirou uma garrafa de água no rosto, se levantou e partiu para cima distribuindo soco e pontapés. O repórter tentou apartar, mas depois de ter tomado uns tapas “acidentais” acabou desistindo.
Nos telejornais noturnos a cena foi retransmitida para todo o território nacional, com entrevistas de ambos os lados falando em processos por ofensa moral, injúria e danos físicos.

Enfim domingo, dia do grande jogo. As Polícias da cidade solicitaram reforços nas cidades vizinhas e passaram a patrulhar ostensivamente os pontos críticos e os principais caminhos para o estádio. Ocorreram poucos incidentes, havia a suspeita de que as torcidas esperariam para partirem uma para cima da outra ao final da partida e o comandante da Polícia Militar rezava a todos os Deuses que realmente as agressões ocorressem “após” a partida e não “durante” a partida, pois, se isso acontecesse seria uma tragédia maior do que a primeira opção porque ocorreria em ambiente fechado, sem lugar para fugir em caso de pânico.
Começa a partida e todos notaram que a função do Carlão em campo seria ser a sombra do Paulinho e lá pelos vinte minutos do primeiro tempo nenhum dos dois ainda não haviam realizado nada: Paulinho não conseguia ficar desmarcado para receber a bola e o Carlão não armava nada e nem era o paredão na frente dos zagueiros de seu time. O jogo estava burocrático e tedioso. Aos trinta há um escanteio para o time do Carlão e ele vai para a área adversária para tentar o cabeceio, Paulinho vai atrás para marcá-lo, durante o empurra-empurra antes da cobrança o Carlão se vira e dá um murro no rosto do Paulinho que cai desacordado, soube-se depois que perdeu dois dentes e teve fratura do maxilar e suspeita de uma concussão craniana, foi internado. Carlão é expulso na hora. Começa a briga, tanto em campo, quanto nas arquibancadas. Parte dos torcedores invade o gramado, a policia já não consegue dominar a situação e começa a lançar gás lacrimogêneo, o trio de arbitragem, mais o quarto juiz, abandona o campo, diretores de ambos os times trocam sopapos. O representante da federação e o comandante da tropa da Policia Militar se reúnem com os presidentes dos times e chegam à conclusão de que é melhor suspender o jogo para uma nova data em campo neutro. A situação somente foi controlada após três horas com o saldo de um morto e uns oitenta gravemente feridos.
Inicialmente Carlão, no domingo à noite, é tido como o grande responsável pela tragédia. As grandes redes o caçam para uma “exclusiva”, mas ninguém sabe onde encontrá-lo. Quando os médicos autorizaram, Paulinho dá sua entrevista dizendo que não guardava rancor, que ele e o Carlão já se conheciam desde os 18 anos, quando participaram de uma Copa São Paulo de Futebol Junior e já haviam disputado um Sul-Americano pela seleção brasileira sub-vinte, quando dividiram o mesmo quarto na concentração e nos hotéis, não se tornaram amigos, mas sempre tiveram certas afinidades, até passaram a jantar juntos de vez em quando desde que passaram a jogar nos atuais times, etc e tal.
Na quarta surgiu um vídeo na internet de uns vinte segundos em que mostrava o real motivo da agressão: Paulinho, não uma, nem duas, mais várias vezes, enfiava o dedo médio no rabo do Carlão que tentava defender-se dando tapas na mão do Paulinho, até que em um momento de extrema irritação deu o tal soco.
Na quinta pela manhã os jornais estampavam as fotos, em seqüência, tiradas do vídeo e, enfim, os telejornais na hora do almoço absolveram o Carlão. Se pegaria ou não uma pesada suspensão não tinha importância, o importante era que ele provou que era macho e não aceitava desaforos.

No apartamento do Paulinho, sentados no sofá, assistindo televisão bem juntinhos, Carlão, sim era lá que ele fora se esconder, implorava que Paulinho o perdoasse pelos dois dentes e lhe jurava amor eterno.