domingo, 30 de agosto de 2009

Pregação

Escrito por Divina Scarpin

“Irmãos, estamos aqui, nesse lugar sagrado, para adorar a Deus, aquele que nos criou e que criou o mundo em que vivemos. É graças a Deus que temos vida, que temos alimentos, calor, abrigo, tudo! Deus é nosso pai e seu amor infinito faz de nós, seus escolhidos, os merecedores de sua graça. É por Deus que existimos, é graças a Ele que respiramos. Aleluia, irmãos!
Mas tem aqueles, aqueles seres sem fé e sem amor no coração, ímpios, pecadores que não reconhecem a grandeza e a bondade do Pai e que questionam seus desígnios. Ah, irmãos, não se deixem enganar por esses demônios pecadores, eles queimarão para todo o sempre no inferno!
Esses hereges dizem que não existe Deus! Eles dizem que se Deus existisse não existiriam coisas ruins no mundo. Dizem que se Deus existisse não existiria morte, não existiria fome, não existiria dor. Mas eles estão errados, irmãos. Deus não quer o mal, Deus não faz o mal, o mal vem de nós mesmos! Nós somos a causa do mal, é a falta de fé em Deus que traz o mal, a morte, a fome, a dor. Quem ama a Deus não teme o mal. Quem ama a Deus aprende com o mal e não dá ouvidos aos ímpios, nunca!
Quando cai sobre nós a fumaça que fecha nossos poros, nos impede de respirar e mata muitos de nós, ela é o mal vindo de Deus? Não irmãos! Aquela fumaça é o castigo enviado por Deus, é o castigo pelos que pecaram em atos e em pensamentos. Mas Deus é bom e faz nascer o bem até mesmo do mal. E o que acontece irmãos? Graças a Deus a fumaça vai se enfraquecendo e muitos de nós criamos resistência a ela e não sofremos mais.
Por que é que isso acontece? Acontece porque Deus nos ama e quer nos mostrar que a fé supera a morte, a fumaça deixa de ser mortal e o povo de deus resiste! A fumaça não nos extermina! É uma lição irmãos, é uma provação para que nos tornemos mais fortes em nossa fé! Mas os ímpios não se convencem! Eles continuam a blasfemar contra Deus e por isso a fumaça um dia volta mais forte e mata mais de nós. Novamente Deus tem piedade e nos faz resistentes, novamente a fumaça enfraquece e Deus espera que aqueles que sobreviveram tenham aprendido a lição. Enquanto houver pecadores, enquanto houver infiéis, a fumaça sempre voltará. É preciso, irmãos, eliminar os hereges! É preciso, irmãos, apagar o pecado da face da terra! É preciso que todos tenhamos fé para que deus não mande mais a fumaça.
E a prancha que cai sobre alguns de nós e nos esmaga? Irmãos, acreditem, a prancha é um aviso de Deus, Ele quer que sejamos perseverantes em nossa fé, Ele quer que sejamos rápidos e que não nos deixemos tomar pela ganância. Muitos saem em busca de alimento e diante da fartura se deixam possuir pela gula, querem mais do que precisam, não lhes basta que Deus lhes tenha dado abundância para que tomem o que necessitam, querem mais, demoram-se junto ao alimento e de lá não saem quando saciados. Não ouvem o mandamento de Deus que ordena que não nos deixemos cair na tentação da gula, não se lembram de Deus, não pensam em Deus, não se mostram humildes perante Deus! E a prancha cai sobre eles e os esmaga. Essa é a razão, irmãos. É o pecado da gula que mata, não a prancha, não Deus!
Temos que combater os hereges entre nós para evitar a fumaça de veneno, temos que combater o pecado dentro de nós para evitar a prancha esmagadora. Temos que ser puros e tementes a Deus, temos que perseverar em nossa fé porque assim Deus será também perseverante em seu amor.
Não esqueçam, irmãos! Combatam os hereges, os ímpios, os pecadores, não dêem ouvidos ao mal. Combatam o pecado fora e dentro de vocês! Não se deixem vencer pela gula, sejam humildes diante da fartura e fiéis diante do Senhor. E, agora, vão em paz irmãos!” E os fiéis se dispersaram entre as frestas das paredes em meio à escuridão.


No outro dia, quando amanhece, os moradores da casa encontram, no chão da cozinha, três baratas mortas. “Pensei que o inseticida não estivesse mais fazendo efeito”, comenta a mãe.

Publicado originalmente em: http://vida-cadela.blogspot.com/2009/08/pregacao.html

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Descoberta

humberto o sousa

João chega de viagem de manhazinha, está cansado, dirigiu a noite toda. A esposa ainda dorme.
Sem fazer barulho, pega o pijama, e se dirige ao banheiro para tomar um banho; ao voltar para o quarto ele vê que a esposa já se levantou e foi preparar um café, o cheiro o atrai para cozinha, senta-se a mesa e fica observando-a. Ela está com quarenta anos e procura manter-se em forma e, com poucas rugas, lembra a garota que ele conheceu há vinte anos. Ela lhe oferece uma xícara de café, mas ele recusa, atrapalharia o seu sono.
Ela vai tomar banho e ele deita-se.
Já está começando a cochilar quando sente que ela deita-se ao seu lado, completamente nua e aninha o corpo junto ao seu, não é sexo que ela procura, ela só quer contar-lhe o que sonhou a noite, todos os dias ela lhe conta o que sonhou. Depois que ela acaba de lhe contar o sonho sai da cama e vai se trocar.
Ele volta a cochilar quando ela o acorda de novo, desta vez com a mão em seu pênis e beijando seu rosto, ele olha para ela suplicante. Ela ignorando o olhar afasta-se, mas a mão insiste em ficar. Ele pede que ela volte a deitar e ela diz que não pode, tem um paciente marcado para as dez horas e, com um “eu te amo” vai embora.
Ele tenta dormir, mas não consegue, está com uma dolorosa ereção.
Levanta-se vai para o banheiro se aliviar e naquele momento tão intimo, quando ele poderia estar possuindo qualquer mulher do mundo, é nela que ele pensa.
Finalmente ele descobre que após vinte anos de casado ele ama a esposa

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Decepção

humberto o sousa

Ela o conheceu no trabalho. Ela recepcionista, ele o patrão.
Ela somente vinte e três anos, ele quase quarenta. Ela corpo perfeito, rosto bonito, simpática e ele acima do peso, careca e com um carisma que faria qualquer pessoa se derreter diante dele.
Ela somente tinha a mãe, que morava em outra cidade e ele, sem família, possuía somente um amigo, Dr. Jarbas, fizeram faculdade juntos e eram sócios na banca de advogados.
No início, ela e o Dr. Almeida, almoçavam juntos e, com o tempo, passaram a jantar juntos, passar finais de semana juntos e finalmente casaram e ela deixou de chamá-lo de Dr. Almeida, ele passou a ser somente o Almeida.
Ela passou a levar uma vida quase que perfeita, ele a enchia de presentes, viagens e carinho. O único problema era que ela queria sexo todos os dias e ele somente de vez em quando, talvez fosse pelo excesso de trabalho. Ela era fogosa na cama, querendo de tudo um pouco e ele adepto do sexo burocrático. Conversaram e decidiram fazer amor uma vez por semana, concessão dela, e ele passaria a ser mais “criativo”.
A infelicidade dela começou dois dias antes de completarem cinco anos de casamento. Ela foi até a loja em que costumava comprar suas roupas intimas e escolheu uma lingerie bem sexy para eles comemorarem a data e a vendedora disse-lhe que seria “melhor” ela escolher outra, intrigada, será que não lhe ficaria bem? Quis saber o motivo e a vendedora relutantemente disse-lhe que o Dr. Almeida, no dia anterior, havia comprado um conjunto semelhante e pedido para embrulhar para presente. Voltou para casa feliz, será que o Almeida estaria ficando “criativo” o suficiente?
Aguardou a data do aniversário ansiosamente e finalmente no dia, nada de presente “criativo”, ela ganhou somente um anel com um imenso diamante o que a deixou decepcionada, será que ele tinha outra?
A dúvida foi crescendo em seu peito e, precisando dividir, ligou para a mãe e juntas bolaram um plano. Ligou para o Almeida contando-lhe que a mãe estava doente e ela iria viajar para cuidar dela, será que ele agüentaria ficar uma semana longe dela?
Ela fez as malas, colocou no carro e viajou, mas somente até a cidade vizinha, hospedou em um hotel, alugou um carro e voltou decidida a seguir marido.
De campana em frente de casa ficou aguardando o marido sair para o trabalho, mas o marido não saiu, pelo contrário, chegou um taxi, buzinou e a garagem foi aberta, o taxi entrou, a garagem foi fechada, dois minutos depois abriu novamente e o taxi partiu. Será que ele teve coragem de trazer a amante para transarem na cama dela?
Ela aguardou trinta minutos e silenciosamente entrou na casa. Com todo cuidado se dirigiu para o quarto do casal e encostou o ouvido na porta e ouviu os gemidos do clímax que se aproximava. Tirou o celular da bolsa e abriu a porta repentinamente. A cena que viu era certamente dantesca: o marido de quatro, peruca de cabelos longos e negros e vestindo a maldita lingerie era enrabado por Jarbas.
Os dois, ao vê-la, imobilizaram-se como se qualquer movimento feito acusasse o que faziam.
Ela, em um movimento ligeiro, atravessou o quarto e abriu a gaveta da cômoda do marido e retirou o revólver que ele ali mantinha para a proteção do casal e apontou para os dois e, com o celular na outra mão bateu várias fotos do casal e, depois, calmamente caminhou até Jarbas, encostou o revólver em sua têmpora e disparou, este desabou por sobre o marido, prendendo-o no chão. Apontando o revólver para o marido ela bateu outras fotos e enviou-as para a mãe.
Olhando para os olhos assustados do marido e dizendo: “Eu te amo tanto”, levou a arma para própria boca, encostando o cano no céu da boca, disparou.

(esta pequena estória é inspirada em um caso contado por Gil Gomes em um programa de rádio a mais de trinta anos)

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

A moça da bicicleta

humberto o sousa


A moça da bicicleta seguia uma rotina diária, chovesse ou fizesse sol: ia pedalar todos os dias no final da tarde na praça da cidade.

Chegava sempre depois das quatro, quando a praça estava relativamente vazia, tendo como os únicos freqüentadores os aposentados com suas intermináveis partidas de dominó ou truco. Partia antes das cinco, hora em que chegavam os praticantes de caminhada que dariam infindáveis voltas em torno da praça, um percurso que conheciam com os olhos fechados.

Ela sempre trajava uma bermuda de ciclismo claramente sem calcinha e camiseta sem mangas. A bicicleta chamava a atenção pela regulagem do assento que era levantado ao máximo, fazendo com que a moça pedalasse quase em pé com a ponta do selim tocando o vão de suas pernas. Certa vez seu pai perguntou-lhe o porquê daquilo e ele, embaraçada, respondeu-lhe que era para exercitar os músculos do bumbum e das coxas.

Enquanto pedalava ela ia pondo os pensamentos em dia Pensava na faculdade que não acabava nunca e ela somente casaria depois de formada. Pensava no ex-namorado que queria dela muito mais que carícias e, como ela fez promessa de casar-se virgem, romperam. Pensava nas amigas que trocavam de namorado toda semana, algumas já com filhos, mal faladas por toda cidade e a mãe proibindo-a de se relacionar com algumas delas. Pensava sobre a melancolia profunda que a acometia e como a amenizava pedalando.

Ela seguia pedalando. Sua face triste aos poucos ia se iluminando aos poucos em um meio sorriso luminoso que era acentuado pelos olhos semicerrados.

Os senhores, que se entretinham com os jogos, ao verem o meio sorriso no rosto dela interrompiam as partidas e começavam a apostar, com toda a discrição, se o momento seria em frente a eles ou no lado oposto, se seria silencioso ou escandaloso e aguardavam.
Neste dia especial foi um show. Ela acelerou as pedaladas e a respiração e de repente o corpo se imobilizou, a bicicleta seguindo somente pela inércia, e, bem em frente às mesas de jogos, ela gritou: “Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhh ... cooooooooooomo éeeee bommmmmmmmmm.” Depois partiu sem olhar para os lados e nem notar os velhinhos que lhe sorriam em solidariedade.

No dia seguinte ela voltaria.